quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A Vida das Formas* ou a demanda da Beleza

Giovanni Bellini, Jovem com espelho, 1515, Kunsthistorisches Museum, Viena

Diz o povo que quem ama o feio, bonito lhe parece. O Chico Buarque vai mais longe (ou mais fundo): amo tanto,  e de tanto amar acho que ela é bonita (1).

Para um certo nível de relacionamento com o mundo, a beleza está relacionada com formas, cores, traços. No caso da beleza humana, a sua avaliação está muitas vezes ligada à sexualidade; neste caso, a beleza articula-se intimamente com a presença de caracteres sexuais secundários mais ou menos marcantes. É o caso dos ombros largos e braços fortes num homem, e dos seios evidentes, da relação entre a cintura estreita e a largura das ancas, ou dos sinais exteriores de juventude que denunciam fertilidade numa mulher, tal como a pele fresca ou os cabelos longos. De facto, é muito difícil avaliar a beleza humana sem ficar profundamente condicionado pelas características sexuais.
Este condicionalismo só poderá ser menos poderoso diante de uma criança, embora mesmo nela o nosso olhar apreciador procure sempre os sinais distintivos entre os sexos. Mas a avaliação da beleza de uma criancinha, que interpretamos como uma beleza pura, permite compreender melhor o que procuramos na Beleza em si mesma: proporção, harmonia, simetria, relação, contraste… e algo mais: a vida das formas. Porque não é possível reconhecer a beleza pungente de uma criança sem reconhecer igualmente a vida, o espírito, o movimento da alma que a anima, e que transparece de um olhar ora inocente, ora sedutor, ora tranquilo, ora extasiado, mas sempre autêntico e ainda inconsciente de si mesmo, ou de um gesto naturalmente gracioso, não tolhido pelas convenções. A beleza da infância deixa transparecer a essência, a verdadeira natureza do Ser, em todas as suas manifestações de vida.
A beleza resulta, então, da harmonia entre a forma e a força vital que a anima, e o encontro da beleza é sempre um acto de unificação. Quando amamos, unificamos o objecto do nosso amor, infalivelmente múltiplo em si mesmo, num todo único e coerente, que é verdadeiramente o ser amado. Então, pouco importa se as suas diversas características físicas não são belas em si mesmas, ou até se o seu conjunto não é particularmente harmonioso. Às formas que vemos junta-se a essência, que é invisível à vista mas não ao coração, e é este conjunto – e não apenas o dos “olhos, nariz e boca” – que nos prende, encanta e comove. O amor é unidade, unificação e síntese. A separatividade é ódio, solidão e divisão (2).
A análise (por oposição à síntese) de cada traço de uma bela mulher confirmará a sua beleza, mas apenas dentro de um contexto redutor, o da mais estrita materialidade. Pode ser suficiente? Nunca a materialidade será suficiente para o ser humano, porque este não é apenas um corpo em busca da sobrevivência física. O amor é a síntese entre a forma da vida e a vida da forma, e esta alquimia não se realiza na praça pública, e sim no crisol do coração humano. Só aí se reconhece a verdadeira Beleza, que não é interior, como pretendem os mais utópicos, nem exterior, como nos gritam as capas das revistas. É, a um só tempo, íntima e universal; cada um a pode reconhecer no olhar amoroso sobre o outro, e todos dela participam, por constituir a natureza do Ser.

(1) Chico Buarque, Tanto Amar
(2) Alice Bailey, 1937

*Expressão retirada das obras de Henri Focillon (Vie des formes, 1934) e Alice Bailey (From Bethlehem to Calvary, 1937), que permitem compreender melhor a Beleza de dois pontos de vista muito distintos.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

À sombra da espada

John William Waterhouse, Miranda - The Tempest, 1916, colecção privada

“Sobre o vasto continente da vida de uma mulher recai a sombra de uma espada. De um dos lados tudo está correcto, definido, ordeiro; os caminhos são rectos, as árvores regulares, o sol ameno; escoltada por cavalheiros, protegida por guardas, casada e enterrada por clérigos, tudo que ela tem de fazer é caminhar com modéstia do berço ao túmulo, e ninguém tocará num fio do seu cabelo. Mas do outro lado tudo é confusão. Nada segue um curso regular. Os caminhos serpenteiam entre pântanos e precipícios; as árvores  uivam e agitam-se e tombam em pedaços”.  

Virginia Woolf, “Harriette Wilson”, in Collected Essays, vol. 3 (tradução livre)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Kaluanã e Eçaiara

Henri Rousseau, A Encantadora de Serpentes, 1907, Museu d'Orsay, Paris

Kaluanã era o filho do cacique e o melhor caçador da sua tribo. Era silencioso e ágil, forte e inteligente. Conhecia todos os ruídos dos animais da floresta, desde os gritos das aves coloridas até ao pisar macio do jaguar, que anda roçando levemente o corpo na folhagem densa. Nem o mais astucioso predador o surpreenderia sem aviso.
Kaluanã também conhecia o vento, e a forma como este transporta e confunde os perfumes da selva, o seu odor e o odor da sua presa. Sabia a que cheiram as plantas boas, as comestíveis e as medicinais, e recuava diante da fragrância praticamente imperceptível das malignas, sem se deixar iludir pelo seu viço.
Kaluanã tinha a visão de uma ave de rapina. Podia seguir o voo de um pássaro na distância, ou encontrar um pequeno macaco nas copas altas e cerradas, ou até perceber as tonalidades subtis que distinguem um insecto da casca da árvore onde se camuflou. A sua seta era exacta e mortífera.
Rodeado de tudo aquilo de que precisava, Kaluanã não conhecia a fome ou o temor do futuro. Em cada novo dia, levava da floresta o alimento da sua família e deixava na floresta o que lhe sobraria. Kaluanã podia dizer com orgulho que era verdadeiramente um homem, um guerreiro sem medo da morte e um caçador igual aos maiores que alguma vez cruzaram a densa mata. A tribo admirava-o e os meninos sonhavam crescer como ele.
Mas Kaluanã tinha um medo secreto, inconfessável, dilacerante.
Quando Kaluanã nascera, o conselho de parentes e vizinhos reunidos para o nomear não conseguia chegar a acordo. Convocado o transe do feiticeiro da tribo, a resposta dos espíritos não se fez esperar: dentro do recém-nascido não existia uma, mas duas almas gémeas, uma masculina e uma feminina. Horrorizado, o pai decidira chamar-lhe Kaluanã, que significa o Grande Guerreiro, e declarara que apenas uma alma, a do menino, podia viver no seu filho. Da irmã gémea nada mais se diria, a não ser que o seu nome seria Eçaiara, ou Aquela Que Foi Esquecida.
Apesar de proibida, a mãe de Kaluanã contara-lhe toda a história quando ele atingira a idade adulta, e assim ele pudera finalmente conhecer o nome daquela com quem dividia um só corpo. Porém, perdida a inocência da infância, a vergonha do segredo que carregava passou a devorá-lo por dentro. Kaluanã temia que qualquer gesto seu, um olhar, uma palavra, o pudesse trair, expondo a sua natureza feminina aos olhos de todos. Esforçou-se por ser o mais forte, o mais rápido, o mais duro. Era ríspido com a mulher, nunca brincava com os filhos e mantinha-se longe de todas as tarefas femininas.
Mas na floresta, enquanto caçava sozinho, sentia-a erguer-se dentro de si. Ela estava lá quando a brisa trazia os seus aromas, e quando Kaluanã se ajoelhava junto da presa caída por terra ela estava ao seu lado. Nas noites de lua cheia ela crescia no seu interior, ocupando todo o espaço livre, fazendo com que o coração lhe parecesse prestes a rebentar no peito e os olhos se enchessem como as marés.
Incapaz de o suportar  por mais tempo, Kaluanã procurou o feiticeiro da tribo e suplicou-lhe que o livrasse de tão grande tormento, arrancando Eçaiara das suas entranhas. Tal não era possível, disse o feiticeiro; Eçaiara apenas podia ser adormecida, lançada num sono longo e profundo. O preço, no entanto, era elevado. Kaluanã não hesitou, e afirmou-se disposto a pagar a sua paz com tudo o que tinha. Então, o feiticeiro, com o coração pesado, deu-lhe a beber a sua poção, que era doce, aromática e inebriante como as flores venenosas da floresta, quando abrem as pétalas coloridas e orvalhadas ao sol da manhã.
De início, Kaluanã não sentiu nada. Mas aos poucos, à medida que passavam os dias, e depois as luas, e depois as estações, Kaluanã começou a compreender que estava finalmente sozinho quando caçava na floresta ou quando adormecia na sua rede iluminada pela lua. Sentiu-se forte como nunca, e soube então que era um guerreiro e um caçador digno da sua estirpe.
Kaluanã aprendera as artes da emboscada e do arco com o seu pai, e fora instruído no domínio dos artifícios da floresta pelos melhores caçadores da tribo. Sabia encontrar e seguir a pista de qualquer homem ou animal, e conhecia intimamente os hábitos das criaturas do mato. Por isso, continuava a trazer abundante caça e pesca das suas incursões. Mas agora algo havia mudado.
Os gritos dos animais não lhe soavam com a mesma clareza, e os cheiros que o vento trazia chegavam-lhe ténues e confundidos. As bagas venenosas pareciam ter perdido o brilho demasiado evidente que até então fazia soar um alarme dentro de si, e por vezes as ervas e os cogumelos mortais eram quase impossíveis de distinguir dos restantes. Os sinais subtis de mudança do tempo chegavam-lhe mais tarde do que habitualmente. A natureza parecia tornar-se cada vez mais opaca aos seus sentidos. Lembrando-se bem das lições que recebera, Kaluanã conseguia conservar o seu estatuto na tribo, mas tudo agora lhe parecia muito mais árduo e cansativo. A floresta fechava-se devagar em torno de si.
Então, Kaluanã passou a usar muito mais vezes a faca com que cortava o mato. Colocava demasiado veneno na ponta das zagaias, e começou a caçar mais animais do que a família podia comer num dia, porque crescia nele o medo de não conseguir uma presa amanhã. Lentamente, a floresta surgia-lhe como inimiga, e Kaluanã só pensava em formas de a vencer. Inventou redes e armadilhas, primeiro pequenas, depois capazes de aprisionar vários animais de uma vez. Abriu as primeiras picadas que a selva conhecera, e deitou abaixo árvores de cuja madeira não precisava, para rasgar aquilo que agora lhe parecia ser um mato sombrio e impenetrável.
Na aldeia, só o velho feiticeiro assistiu às mudanças com tristeza. As invenções de Kaluanã, feito cacique da tribo, a sua impetuosidade e a novidade das suas estratégias deslumbraram homens, mulheres e crianças. Em pouco tempo, toda a face da floresta conhecida havia mudado. Ribeiros eram desviados para alimentar as plantações das clareiras roubadas ao que antes era bosque frondoso; árvores eram derrubadas para se fazerem acessos rápidos; animais eram caçados e pescados em massa, porque era fácil fazê-lo. Toda a tribo esqueceu o que era estar na floresta como um ser da floresta. Não é necessário conhecer aquilo que se pode submeter pela força.
E Kaluanã também esqueceu Eçaiara.