Desde
as épocas mais arcaicas, o mistério feminino da menstruação foi reverenciado e
temido em praticamente todas as sociedades. A sua ligação com as fases da Lua,
e o facto do ciclo médio feminino (28 dias) corresponder exactamente a uma
lunação, não podia passar despercebida, e só serviu para aumentar o carácter
sagrado desta relação íntima e exclusiva entre as mulheres e a Natureza. Do assombro
causado pelo fenómeno nasceram inúmeros mitos e rituais, e a crença
generalizada de que o próprio sangue menstrual daria origem à criança que crescia
no útero. Entre os Maoris, em diversas tribos africanas, e até em relatos hindus,
os bebés são formados de sangue menstrual coagulado, o que para Aristóteles e
Plínio correspondia a uma verdade (pré) científica.
Diversos mitos do Médio Oriente
relatam a criação da Humanidade a partir de terra misturada com sangue menstrual,
e esta concepção encontra-se mesmo no nome de Adão, o primeiro homem, da palavra
hebraica que significa “sangue” (dam). O feminino de Adão, ou adamah,
significa por sua vez “terra” (chão), mas também “vermelho”. No Génesis, Adão é
formado a partir de adamah, a terra vermelha
ou ensanguentada à qual Deus insufla então o sopro da vida. Também no
Corão se pode ler que Allah criou o homem a partir de alaqa, um coágulo de sangue. Tais histórias repetem-se por todo o globo,
encontrando-se relatos semelhantes na América do Sul ou nos mais arcaicos mitos
gregos e romanos.
Naturalmente, o poder vivificante do sangue menstrual fazia dele um "elixir da longevidade" e uma cura poderosa. Indícios
destas crenças encontram-se em lendas que referem o sangue da Lua ou o vinho da
deusa, ou o sangue da sabedoria da
mitologia nórdica, bebido pelos deuses de forma equivalente ao Soma indiano, ao
sangue de Ísis (Sa) egípcio, ao
Amrita persa ou à Ambrósia da imortalidade do Olimpo grego. O banho revigorante
no líquido que guarda a essência da vida também faz parte de inúmeras histórias,
e a convicção de que a união sexual com uma mulher menstruada daria ao homem poderes
extraordinários, ou até a vida eterna, encontra-se em diversos textos tântricos
e taoistas.
Estas são as mais antigas versões de uma história que o tempo adulterou inteiramente. Com o desenvolvimento das sociedades patriarcais, tais crenças foram sendo disfarçadas ou substituídas por outras, nas quais a reverência pelo sangue uterino passa a temor, e finalmente a aversão. A palavra hebraica dam (sangue) viria a significar “mulher” noutras línguas indo-europeias (damsel, madam, dama, dame), e também “maldição” ou “amaldiçoado” (damned, danado, etc.). O latim damnare significa "condenar", e provém de damnum, "prejuízo, perda ou ferida”, o que neste contexto não podia ser mais explícito.
Aos poucos, as classes sacerdotais patriarcais
foram revendo os mistérios das mulheres de acordo com os seus preconceitos próprios.
Se estes preconceitos estavam em parte baseados na ignorância e no desejo de tomar
o poder às sociedades tendencialmente matriarcais, eram também consequência do desenvolvimento
do pensamento simbólico, este especificamente masculino, e de certa forma oposto
à vivência do corpo que caracteriza o universo feminino. Talvez não seja
descabido dizer que a sacralidade dos ciclos das mulheres, harmonizados com os
ritmos cósmicos e naturais, e dos quais resulta toda a vida humana, se perdeu de
vista quando os homens lhes tentaram sobrepor o pensamento abstracto e simbólico.
O Feminino é literal, material e corpóreo, enquanto o Masculino é simbólico, sublimado
e mental.
A partir daqui, surgem muitas das interdições à
mulher que menstrua: o contacto com o seu sangue, o mesmo que antigamente dava
a imortalidade, pode agora causar a morte, a doença, a cegueira, a perda de
virilidade. Das leis brâmanes e mitos védicos ao Talmude, dos preceitos zoroastrianos
à tradição rabínica, dos relatos de Plínio às superstições cristãs, o perigo
que o sangue uterino representa é anunciado em todas as tradições. As mulheres que
sangram são afastadas da comida, dos homens, da comunidade, dos templos. Nada, afirma São Jerónimo, é tão impuro como uma mulher menstruada.
O pensamento científico apenas desmistificou parte
destas crenças. Até ao século XX, médicos e cientistas ainda se referiram à menstruação
como uma patologia e à mulher menstruada como um ser débil. Todas aquelas que lêem
este texto devem ainda recordar a interdição de fazer desporto, tomar banho, lavar
o cabelo ou bater ovos, entre outras…
E onde todos estes mitos caíram por terra, surgiu
outra ameaça aos mistérios femininos, talvez a mais insidiosa de todas: a sugestão
de que estes não existem. Na sociedade actual, “moderna” mas ainda
indubitavelmente patriarcal, cujo altar é o da Razão e da Ciência, o
sangramento mensal não passa de um pequeno incómodo ultrapassável – e que um
dia será definitivamente posto de parte pelos avanços da farmacêutica. A mulher moderna tem ao seu dispor tratamentos
hormonais, analgésicos e barreiras discretas e eficazes que lhe permitem
domesticar o ciclo menstrual, anular os seus incómodos, esquecer-se da sua existência.
Pode viver uma vida igual à do homem.
E
no entanto, o mistério do derrame de sangue como sinal de amadurecimento chegou
a impressionar tanto os seres humanos que condicionou até mesmo os ritos de
passagem masculinos. Em diversas sociedades tradicionais, também aos rapazinhos
no limiar da idade adulta era provocado sangramento, reproduzindo-se neles a
misteriosa “ferida” arquetípica que abria as meninas à comunhão com os ritmos
cósmicos. Hoje em dia só elas continuam a enfrentar este rito de passagem, já
que apenas na mulher ele acontece naturalmente. É isto uma maldição, ou uma
oportunidade extraordinária para todas nós?
Ainda
que se tenha perdido o contexto sagrado da menstruação, a sua vivência física
mantém-se. Menstruação, gravidez e parto, menopausa: o corpo da mulher é um verdadeiro
“fio de Ariadne” para quem quiser aventurar-se pelo labirinto do Feminino e dos
seus mistérios. Ao contrário da mente, o
corpo não mente. E o corpo do mundo é feminino.