sábado, 31 de março de 2012

Peter Pan e a terra dos Meninos Perdidos


Antigamente – palavra que não diz tudo, mas diz o suficiente –, os rapazinhos eram criados pelas suas mães e iniciados pelos seus pais. Isto acontecia em todas as épocas e em todas as culturas, assumindo diferenças meramente contextuais. A criança que a mãe alimentava, de quem cuidava e que protegia no interior do lar era um dia levada pelo pai, ou por quem o representasse, para que lhe fosse apresentado o mundo e o seu papel neste. Os rituais de passagem podiam ser assustadores, sangrentos e dolorosos, ou resumir-se à primeira passagem de uma navalha pela cara quase imberbe. O menino ou jovem adolescente podia ser simplesmente levado à taberna, para provar o primeiro cigarro ou o primeiro copo de vinho ao lado dos mais velhos, ou até acompanhar o pai a um prostíbulo. Seguia-se muitas vezes a introdução ao ofício familiar, quer este fosse o de ourives, o de carpinteiro, ou o de caçador numa floresta equatorial. Estas praxes, que podiam envolver mais ou menos cerimonial, eram certas e seguras. Constituíam um dever a que nenhum progenitor se escusaria, e sem o qual a sociedade não considerava o rapaz apto para assumir o seu futuro e assegurar o bem-estar da comunidade e da sua futura família. Muitas delas não encontram lugar na sociedade moderna, mas significará isso que o princípio que lhe subjaz também perdeu actualidade?
Ninguém duvida de que a energia masculina não é idêntica à feminina. Uma e outra são a base do próprio princípio da Dualidade e de todas as suas expressões. Numa sociedade dita “moderna”, o melhor que podemos esperar da educação das crianças é que seja igual (e igualitária) para meninos e meninas. E está bem assim, caso queiramos permanecer à superfície das coisas. É mesmo a única forma de educação admissível, dadas as contingências e fragilidades do mundo em que vivemos. Porém, se a nossa sociedade fosse fundada e mantida sobre valores mais profundos, saber-se-ia que um menino, sendo essencialmente diferente de uma menina, precisa do reconhecimento dessa diferença para se poder conhecer a si próprio e às suas potencialidades. A ocultação da diferença, mesmo que bem intencionada e tendo como objectivo uma certa noção de igualdade, equivale a um recalcamento dos elementos especificamente masculinos no menino e especificamente femininos na menina, cujo resultado prático é bem visível hoje em dia.
O feminino recalcado, desconhecido e incapaz de se expressar é substituído pela sua infeliz caricatura, que nos assalta a partir de outdoors gigantes onde mulheres de plástico assumem uma “feminilidade” feita para o proveito masculino mais primário, inspirada na pornografia hoje generalizada, que vai insidiosamente governando a vida sexual até de quem não a consome. Quem sabe ainda, hoje em dia, o que é a verdadeira capacidade de sedução do Feminino, sem a confundir com maneirismos, comportamentos e vestuários estereotipados?
Por sua vez, o masculino recalcado resulta numa produção destinada a oferecer às mulheres aquilo que estas supostamente procuram: um homem supersensível e vergado às suas vontades e decisões.
Na verdade, uma jovem que não reconheça o seu lado feminino mais profundo tenderá a adoptar uma feminilidade masculinizada (como o protótipo da “mulher de negócios” ou o da “fêmea sempre disponível”, entre outros), da mesma forma que um rapaz que não reconheça o seu lado masculino mais profundo vai adoptar uma masculinidade efeminada. Para além da natural experimentação e inconvencionalismo que caracteriza a juventude, não pode ser outra a origem dos looks andróginos, da exploração “lúdica” da homossexualidade ou da bissexualidade entre adolescentes, do conceito de metrosexual, e de outras tendências semelhantes.
O reconhecimento da masculinidade num rapaz – que é o verdadeiro propósito das iniciações tradicionais – não lhe dá nada que ele não possua; dá-lhe, isso sim, acesso ao que ele já possui. E esse acesso fica vedado quando a sociedade onde o rapaz cresce, e os modelos masculinos que o rodeiam, não lhe proporcionam esse reconhecimento. Não há nada de verdadeiramente “mágico” num ritual tribal de iniciação, a não ser a maravilha e o poder do reconhecimento do Ser. Qualquer psicólogo moderno poderá confirmá-lo: o que o paciente precisa é de ser ouvido e reconhecido. O reconhecimento do outro é essencial para a nossa auto-imagem, e isto mesmo se passa com o menino que sente tudo em si de forma confusa, desordenada, e precisa que lhe digam que tudo vai bem, que tudo está certo. Que aquilo que sente é natural, e que há um grupo de iguais aos quais se pode juntar. Que não está sozinho. Que é um Homem. Que há um caminho longamente trilhado aberto diante de si.
Porém, hoje em dia cada vez menos meninos são desta forma reconhecidos pelos seus pais. Muitos são educados quase exclusivamente num mundo “feminino” - por uma mãe sozinha, mas também por uma escola feminilizada[1]. Estes meninos são mais parecidos com as suas colegas de carteira, mais sensíveis e mais capazes de se envolverem emocionalmente com os outros, mas (tal como as meninas na mesma situação, educadas para serem “iguais” aos rapazinhos) são sem dúvida menos livres interiormente. Desconhecendo o seu verdadeiro poder, eles são mais frágeis, mais indefesos e mais facilmente manipuláveis por uma sociedade desligada de qualquer valor profundo. Muitos permanecem eternas crianças, procurando nas mulheres uma segunda mãe, e subvertendo totalmente o valor único e o poder mágico da relação entre um homem e uma mulher. Alguns destes homens não se zangam - fazem birras. Coleccionam brinquedos e cansam-se dos brinquedos, buscam o prazer em todas as suas formas, e rejeitam responsabilidades. Outros entregam-se de forma submissa ao domínio das mulheres, talvez desejando fazer o mesmo que os restantes, mas sem coragem para tal. Uns e outros crescem e envelhecem sem saber quem são, e vão moldando uma sociedade onde a virilidade se confunde com o domínio do mais forte, do mais poderoso ou do mais rico. Incapazes de reconhecer e aspirar ao encontro com o verdadeiro Feminino, eles temem as mulheres como super-mães dominadoras e castradoras às quais nada têm para opor, porque o verdadeiro Masculino dorme no seu interior.
Os relacionamentos que assim se estabelecem entre homens e mulheres são tendencialmente frustrantes, muitas vezes governados por uma culpa e por um medo infantis, que, como saberá quem já foi criança, não possuem limites. Estas famílias são também frequentemente dirigidas pelos filhos, cujas actividades e vontades ocupam todos os momentos livres, e cujo bem-estar é colocado acima de toda a razoabilidade. Isto acontece porque tais casais não são compostos por um Homem e uma Mulher, e sim por uma mulher-mãe que tudo governa, e por um homem-filho que se deve submeter aos seus planos, exercendo essencialmente o papel de irmão mais velho dos próprios filhos. A emasculinização do homem é tal que muitas vezes é a própria mulher a preferir uma separação, sabendo no seu íntimo que há algo mais, enquanto ele se conforma com esta conjugalidade disforme e muitas vezes progressivamente dessexualizada, até mesmo quando a sua imaginação (ou mais do que isso) parte em busca de mulheres “femininas” que são muitas vezes apenas a caricatura do Feminino referida anteriormente.
O mundo precisa desesperadamente do regresso do Feminino, mas precisa igualmente de que os homens reconheçam o Masculino em si e o aceitem sem vergonha. A masculinidade não é insensibilidade ou brutalidade – nem no ser humano nem na natureza. É a energia focada e dirigida que tende para o exterior e para a acção no mundo, a força calorosa e gentil que emana da auto-confiança, a segurança e a firmeza que sustentam o Universo e permitem que um bebé repouse inteiramente rendido nos braços de quem o embala. Não impede que o homem se comova com a beleza do mundo, com a música ou a arte, ou com o rosto do seu filho; significa, pelo contrário, que ele não teme nem o mundo, nem a comoção, nem a paternidade. A energia do Feminino é essencial para nutrir a Humanidade, mas a energia do Masculino é fundamental para a conduzir em direcção ao futuro. É necessário que os homens reencontrem em si os arquétipos que lhes pertencem por direito: o Pai, o Amante, o Rei, o Guerreiro, o Mago, o Sacerdote. E que o passem aos seus filhos, para que estes, acima de tudo, saibam quem são.


[1] É geralmente aceite que a escolaridade nos moldes actuais premeia sobretudo comportamentos mais femininos, como o acatamento de regras e da autoridade, longos períodos de silêncio e imobilidade, mais teoria e menos prática, etc.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Tenho fases, como a lua - O quarto crescente

Margarida Cepeda, Lua Crescente
O simbolismo do crescente lunar é bem conhecido e auto-evidente. De forma geral, sabemos que o quarto crescente é considerado uma boa altura para cortar o cabelo e podar ramos, caso desejemos que estes cresçam mais fortes, e que é uma fase fértil, adequada à plantação e ao transplante de muitas espécies vegetais (aquelas cuja parte comestível cresce acima da terra). Podemos imaginar que os dias que medeiam entre a Lua Nova e a Lua Cheia são propícios à regeneração da vida, a todas as formas de criação, à tomada de iniciativas e ao começo de novos projectos.
Em termos religiosos, o simbolismo do crescente reflecte de certa forma esta visão mais prática da fase lunar[1]. No mundo judaico, a luz crescente desta lua simboliza o crescimento simultâneo da presença divina no mundo, entendida como o aspecto feminino de Deus. No Hinduísmo, o crescente simboliza o poder criativo do feminino e da natureza, sendo um dos símbolos do deus Shiva, o Transformador, parte da tripla deidade hindu. No Cristianismo, a associação da lua à Virgem está directamente relacionada com a passagem do Cântico dos Cânticos onde se pode ler quem é essa que desponta como a aurora, bela como a Lua, fulgurante como o Sol, terrível como as coisas gran­dio­sas (Ct. 6:10), e com uma citação do Livro do Apocalipse - apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça (Ap. 12:1). A transformação desta Lua no crescente lunar terá uma raiz pagã, uma vez que o crescente era um antigo símbolo da fase de donzela da Tripla Deusa.
Mas pouco se reflecte sobre o instante do pleno quarto crescente, também conhecido como primeiro quarto ou meia-lua, e cuja próxima manifestação terá lugar no 30 deste mês de Março, sexta-feira, às 19:41 de Lisboa. Então, a lua visível da Terra estará perfeitamente dividida entre a luz e a sombra, repetindo-se o equilíbrio cíclico dos opostos que se regista duas vezes por mês (no primeiro e no terceiro[2] quartos da Lua) e duas vezes por ano (nos Equinócios, quando se igualam as durações dos dias e das noites).
Sexta e sábado próximos são portanto dias adequados à harmonização do nosso ser – corpo, emoções, psique e mente –, momentos equinociais em pequena escala, mas que possivelmente não passarão despercebidos aos mais sensíveis às fases lunares. Até lá, vamos acolher os primeiros sinais de novas manifestações nas nossas vidas, que certamente surgiram com o tímido crescente dos três dias posteriores à Lua Nova (22 de Março), mas que agora se poderão revelar com mais clareza – assim estejamos dispostos a acolhê-los e nutri-los. Podemos também usar esta fase para “podar” aquilo que, em qualquer área das nossas vidas, está a evoluir de forma fraca ou desarmónica, e que queremos ver fortalecido ou corrigido. Esta poda simbólica, mas com efeitos geralmente bem reais, implica por vezes o corte de elementos a que estamos muito habituados, e pode portanto implicar dor e sentimentos de perda, pelo devemos estar conscientes de como fazer esta limpeza – tal como um bom jardineiro, de resto.
Quando chegar o pleno crescente talvez nos seja então possível fazer um balanço tranquilo e lúcido do ponto em que nos encontramos e do que tem vindo a mudar em nós, sabendo que a Luz crescerá sobre a sombra dia após dia, até que a próxima Lua Cheia venha orientar o seu foco iluminador para as nossas facetas encobertas.


[1] Já no mundo islâmico a importância dos astros resume-se essencialmente à contagem do tempo, e um novo mês principia no momento em que o crescente lunar se torna visível no céu a partir do 29.º ou do 30.º dia do mês em curso.
[2] Ou pleno quarto minguante.


sexta-feira, 23 de março de 2012

A libertação das mulheres e a opressão do Feminino

Deusa Flora, fresco oriundo de Stabia (Villa de Arianna), século I d.C.
Sabemos que desde a Revolução Industrial o estatuto das mulheres na Europa, na América do Norte, e um pouco por todo o globo progrediu muito em direcção à igualdade dos sexos. Muitas foram as causas e as consequências deste movimento, mas o resultado da luta feminina (e feminista) e da evolução de uma sociedade progressivamente mais consciente e esclarecida permitiu que hoje em dia pelo menos a descriminação sexual mais grosseira seja um problema secundário nas vidas de grande parte das mulheres ocidentais.
Não é, infelizmente, o caso de uma imensa maioria de mulheres do Terceiro Mundo, que ainda vivem em desesperantes condições de miséria, submissão, abuso e impotência. Diante do número esmagador e da profundidade do infortúnio diário destas mulheres e meninas, a própria noção de “libertação sexual” soa irrelevante, se não fútil. A maior parte da população feminina vive em zonas pobres do globo, sendo constituída por uma maioria de mulheres iletradas, malnutridas e debilitadas, que carregam inúmeros fardos quotidianos nas suas comunidades, e desde tenra idade.
Muito está ainda por fazer, e não apenas em países menos desenvolvidos, mas também no âmago das sociedades ditas “evoluídas”, e no próprio seio das nossas famílias e comunidades. No entanto, parece verdade que a emancipação da mulher deixou de ser um assunto prioritário no mundo ocidental, que a necessidade e justeza deste processo são universalmente reconhecidas, e que a busca de equidade sexual não mais será abandonada.
No entanto, há que fazer uma distinção fundamental entre os direitos das mulheres como seres humanos, e a condição do princípio feminino no mundo.
Muitas mulheres dirão, socorrendo-se de boas razões, que a “condição feminina” está hoje fortalecida. Certamente que assim é no nosso pequeno mundo, onde meninos e meninas crescem, brincam e estudam juntos; onde o sucesso em qualquer curso ou profissão está ao nosso alcance e ao alcance das nossas filhas; onde a ninguém lembraria pedir a uma mulher o documento assinado pelo pai ou marido autorizando-a a tirar a carta de condução, a viajar ou a votar; onde, enfim, a Lei concede direitos plenos e iguais aos cidadãos do sexo feminino, tal como aos do sexo masculino. Não serão as pequenas (?) desvirtuações diárias deste sistema que porão em causa a sua bondade.
Porém, nada disto significa que o princípio universal feminino esteja igualmente fortalecido, ou que seja sequer reconhecido na sua essência e aceite na sua especificidade. Pelo contrário: a melhoria dos direitos das mulheres foi conseguida, em boa medida, à custa da integração de valores masculinos, e o resultado desta apropriação, ainda que fundamental a nível dos direitos humanos, não pode em caso algum ser equiparado a uma vitória do Feminino. Representa, na melhor hipótese, uma vitória das mulheres e de toda a humanidade, triunfo que ninguém poderia menorizar – mas que custou um elevado preço. Embora queiramos acreditar que todos o voltaríamos a pagar se necessário, a verdade é que chegou o momento de fazer as contas.
A masculinização, nas palavras de uma avó de 90 anos, genuína moradora do bairro lisboeta da Sé, trouxe às mulheres uma certa libertação. Não o poderíamos dizer melhor. Aos 40, educada na igualdade plena mas cada vez mais consciente do preço a pagar, outra mulher reconhece: na maior parte das pessoas, eu incluída, é o masculino que impera.
Vencemos na vida, é certo, mas não à custa da nossa intuição, sensibilidade e receptividade, e muitas vezes nem mesmo à custa da nossa empatia, capacidade de trabalho em grupo, inteligência sintética e criatividade. É muito mais provável que as nossas conquistas tenham estado relacionadas com os conhecimentos académicos demonstrados, capacidade de raciocínio lógico e de análise, objectividade, dinamismo, capacidade de liderança, e uma série de mais-valias de terminologia moderna, como “proactividade” ou “empreendorismo”.
E então, não somos tão capazes nestes domínios quanto um homem?
Certamente que sim, mas não reside aqui a nossa feminilidade.
Na verdade, está generalizada a confusão entre os princípios feminino e masculino e os homens e as mulheres que os vivenciam. Naturalmente, esta confusão ocorre porque as mulheres representam a mais completa encarnação do Feminino, tal como os homens no que respeita ao Masculino. Porém, homens e mulheres não são arquétipos. Ambos possuem aspectos do sexo oposto presentes e operantes na sua biologia e na sua psique, e, recorrendo ao masculino em si (principalmente se o fizer de forma consciente), uma mulher não será menos do que qualquer homem nas áreas tradicionalmente masculinas, da mesma forma que só recorrendo ao seu legado feminino se poderá expressar livremente nas áreas tradicionalmente femininas.
O recurso às competências masculinas conduziu a mulher a uma posição social e económica mais igualitária, mas nada fez pela condição do Feminino. O mundo contemporâneo está seguramente dominado por valores masculinos, que em si mesmos são tão essenciais como a luz do Sol, mas que em excesso, e sem o contrabalanço dos valores femininos, queimam onde deveriam aquecer e cegam onde deveriam iluminar. E este mundo é construído, dia após dia e pedra sobre pedra, por todos nós, homens e mulheres, novos e velhos, ricos e pobres, quase universalmente dominados pela convicção de que a felicidade está guardada para os “empreendedores dinâmicos e proactivos”, os geradores de riqueza material, os notáveis da ciência e da tecnologia, os príncipes da economia e das finanças, os senhores da guerra, os mais fortes, os mais rápidos, os mais espertos. Queremos que os nossos filhos sigam os seus passos e se tornem empresários, gestores, cientistas, médicos e advogados. Criar os filhos, cuidar dos idosos, ser um consumidor consciente, cultivar uma pequena horta, ter hábitos ecológicos, desenvolver projectos comunitários, fazer voluntariado e serviço social, explorar a criatividade e as capacidades pessoais, tudo isso é muito bonito – desde que não roube horas à empresa, nem subsídios aos contribuintes.
Para o bem maior de todos nós, e graças ao esforço de muitos heróis e sobretudo heroínas, as mulheres ocidentais (e apenas estas, convém recordar) vivem hoje em dia em plano de igualdade com a outra metade da humanidade. Mas os princípios do Feminino nunca foram, em toda a História, tão ignorados por uma civilização assente, enquanto tal, em valores que lhes são diametralmente opostos.
Há esperança? Certamente que sim, se esta mesma civilização, hoje em profunda crise, for capaz de ver nas qualidades intrinsecamente femininas do Ser o fio de Ariadne que a poderá conduzir para fora do labirinto em colapso da materialidade e da “lei do mais forte”. O estabelecimento de teias locais de entreajuda, os projectos em micro-escala (hortas comunitárias, pequenos negócios, projectos artesanais, etc.), as trocas directas, cada vez mais “na moda” (trocas de tempo, de bens, de serviços e de capacidades pessoais), o serviço voluntário, a criatividade na busca de novas soluções, a ênfase nas relações interpessoais, todas estas tendências que pertencem claramente ao domínio do feminino, e que até agora foram vistas como secundárias por não prometerem soluções espectaculares nem serem geradoras de riqueza em larga escala, podem vir a revelar-se como solução para ultrapassar as dificuldades do presente.
Que regresse então a Grande Deusa, com os seus passos pequenos e os seus gestos suaves. Que chegue descalça, sem ressoar de trombetas nem brilho ofuscante de holofotes, sem anúncios públicos, sem cortes de ministros e partidários, dispensando orçamentos, estatísticas e estudos de mercado. Que regresse o Feminino, como a água da chuva que tanto tarda, para lentamente inundar a Terra sequiosa. Pela sua própria natureza, nunca o Feminino se recusará a quem o procura.

quarta-feira, 21 de março de 2012

O primeiro dia (do resto da tua vida)


Le Bateleur (o Mago), Tarot de Oswald Wirth
Em Portugal continental o Equinócio da Primavera teve lugar este ano às 5.14h de ontem, dia 20 de Março. Hoje, dia 21 de Março, comemora-se o Dia Mundial da Infância, o Dia Mundial da Árvore e da Floresta e o Dia Mundial da Poesia, mas também o início do ano astrológico, com o Sol a entrar no signo do Carneiro. Falta aqui, porém, uma antiquíssima celebração: a do Ano Novo.
Em 1582, a reforma do calendário Gregoriano fez da festa natalícia do Sol Invictus, que celebra o solstício de inverno, a marca do fim de um ano e o anúncio do início de outro, destronando oficialmente as celebrações equinociais ligadas às fases da lua. Relembremos que a mais antiga celebração do Ano Novo conhecida ocorreu na Mesopotâmia, em c. 2000 a.C., onde o ano começava por volta do equinócio da primavera, e o primeiro calendário romano, de base lunar, tinha início no dia 1 de Março. Até 1582, a Europa celebrava o Ano Novo em datas variáveis, mas próximas da Primavera, e em Portugal o ano civil começou a 1 de Março durante toda a Idade Média.
Estamos sem dúvida habituados a celebrar o Ano Novo no dia 1 de Janeiro, após o Natal e entre o frio do Inverno, ainda bem longe de qualquer “novidade” que não seja a do recente nascimento do Menino divino, para aqueles que O festejam. Mas é nos alvores da Primavera que toda a natureza comemora o Novo, vestindo-se para o receber com os seus melhores trajes, cantando-lhe as mais alegres melodias em coros de mil aves, perfumando o ar com as fragrâncias do jasmim e da laranjeira, despertando os nossos sentidos para a vida, e apresentando ao mundo os seus “primeiros frutos”.
Mas ainda será necessário esperar mais umas horas até ao verdadeiro início do novo tempo, já que só amanhã, dia 22 de Março, terminará o fim deste ciclo lunar, com a Lua Nova em Carneiro – tempo ideal para plantar as sementes de um novo projecto na terra primaveril, que desperta do pousio invernal sob os raios do Sol de Carneiro. Com o encerrar do ciclo lunar encerra-se também o ciclo astrológico, marcado pelo Sol em Peixes, último signo do Zodíaco.
No entanto, este começo não se fará sem alguma tensão, porque uma Lua Nova não é a melhor influência para um signo fogoso, impaciente e pioneiro como é o Carneiro. Mais do que plantar a semente na terra escura e esperar que ela se desenvolva oculta, o Carneiro desejaria vê-la já brotar e dar fruto. Além disso, Marte – o regente do Carneiro – está ainda retrógrado em Virgem, detendo o progresso desta energia muito exterior e masculina, e Mercúrio está retrógrado (desde 12 de Março) no próprio Carneiro (para além de Saturno, que está retrógrado em Balança). São muitas barreiras a deter o impulso criador e iniciador do Carneiro – mas certamente por uma boa razão.
Uma série de posições planetárias, incluindo Mercúrio retrógrado, tornam muito possível que não tenhamos acesso a toda a informação necessária para levar adiante os nossos projectos; outras exigem-nos que sejamos sobretudo práticos e terra-a-terra. Recordemos que por volta de 14 de Março os planetas Júpiter, Vénus (ambos em Touro), Marte (em Virgem) e Plutão (em Capricórnio) formaram no céu um triângulo perfeito, o raro “jackpot” das conjunções astrológicas e seguramente um dos melhores aspectos do ano, cujos efeitos duram cerca de três semanas, e que, por estarem em signos do elemento terra, nos falam de sentido prático, responsabilidade, acções eficazes no mundo real, regularidade, concentração, método, trabalho, dedicação e perseverança. Já a conjunção de Júpiter e Vénus em Touro recorda-nos que é indispensável não esquecermos os nossos valores pessoais fundamentais.
Portanto, seguremos a energia de Carneiro, não de forma a tolhê-la por completo – este é, de facto, um momento para novos começos, para agir, para seguir impulsos e realizar sonhos (e como não seria, com o Sol, a Lua e Urano em Carneiro?) – mas de forma a fazê-lo sem perder de vista o mundo prático, os limites individuais, materiais e sociais, e os valores pessoais de cada um. Este Carneiro de 2012 terá de ter alguma paciência, porque a Lua Nova, os planetas retrógrados e o cenário muito terra-a-terra que formam o pano de fundo no seu nascimento cósmico não são os melhores aliados da sua fogosidade.

segunda-feira, 19 de março de 2012

O poder do útero (I)

Detalhe da Criação do Mundo e Expulsão do Paraíso, Giovanni di Paolo, 1445
No princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas (Gn:1-2)

No princípio, a Terra era um grande útero: informe, vazia e mergulhada numa húmida escuridão. Era terra, água, silêncio e espaço.

A espiritualidade e a sexualidade, essas tremendas forças motrizes que em grande medida escapam à compreensão humana, são dois temas fundamentais para a humanidade desde o passado mais recuado. Os mistérios da reprodução, os ciclos da vida e da morte, a fertilidade da mulher e da natureza, o renovamento agrícola e animal na Primavera e a sua morte ou adormecimento no Inverno, o nascimento da luz em cada manhã e o seu desaparecimento nocturno, as luas cheias e vazias, o sangue menstrual, a gravidez e o parto, todos estes acontecimentos assombrosos e incontroláveis foram objecto de outros tantos ritos e cultos destinados a conquistar estas forças.
Muitos rituais primitivos tinham lugar em cavernas, poderosos símbolos uterinos, onde ficaram gravadas – em salas a tais distâncias e profundidades, e com acessos tão difíceis, que se torna evidente terem sido utilizadas apenas para fins sagrados – pinturas rupestres evocadoras dos ciclos da vida e da morte, da caça e da fertilidade. Quando os rituais estavam ligados a sepultamentos, parece existir já uma ligação entre a terra (caverna, montanha, etc.), o útero e a possibilidade de renascimento, relação que será posteriormente atestada em culturas com uma religião e rituais já plenamente desenvolvidos. O corpo é enterrado como uma semente no ventre da terra, muitas vezes em posição fetal (típico do período Paleolítico) ou em sepulturas ou recipientes redondos, forma simbólica do feminino.
Muito mais tarde, e até hoje em dia, a disposição de estruturas em torno de um centro será utilizada em baptistérios e monumentos funerários, estando portanto ligada à noção de morte e ressurreição. O mesmo acontece com locais iniciáticos, que se reportam a uma realidade semelhante: morrer para um determinado tipo de vida (material, ou profana) e renascer para outra mais elevada (espiritual, ou eterna). Nos ritos de purificação (iniciação ou baptismo) é ainda necessário o atravessamento das águas, por vezes em rios subterrâneos, o que reforça a ideia de morte e renascimento no útero/caverna/espaço circular, após a passagem das águas amnióticas. Tais águas podem ser ultrapassadas duas vezes, no caso de uma vida profana (no nascimento e na morte – basta lembrar a barca de Caronte conduzindo as almas dos mortos através do Estige) e quatro vezes no caso do iniciado, como vimos acima.
O útero é assim reconhecido como berço e cadinho da Criação, local sagrado ou templo onde reina o silêncio primordial, fonte de vida, de vigor e de nutrimento, antídoto da morte e facilitador de toda a ressurreição, imagem do lar original de onde provém todos os seres viventes e símbolo do colo e do calor maternal.
Mas vivemos hoje, e desde há muito, num mundo onde o princípio feminino universal foi sendo progressivamente reprimido, ou até violentamente subjugado, por um princípio masculino também ele descentrado e desligado dos seus valores autênticos. Hoje em dia, a Terra é mais escrava do que mãe, e o que eram antes os seus tesouros são agora o nosso saque. O útero feminino só é reconhecido como incubadora que a ciência (ainda) não conseguiu igualar, e bastará observar o cânone de beleza actual para compreender o que fizemos ao próprio centro do feminino sagrado.
Na Idade Média, a celebração da formosura de uma mulher implicava – na pintura ou na poesia – uma referência, mais ou menos subtil, ao ventre evidente e suavemente arredondado que as suas vestes salientavam. Agora, tanto o imaginário masculino como a vaidade feminina procuram um ventre liso – ou mais do que liso, até mesmo côncavo – um espaço vazio no exterior do corpo que simbolicamente pressiona até esmagar o espaço vazio do interior, esse lugar mágico onde todo o potencial poderia ser gerado. Que seria de uma mulher, sem o vazio cósmico e criador do seu útero? E que seria de um homem, sem este espaço sagrado e silencioso que nunca se recusa àquele que o procura de coração aberto, e onde brota, segundo o Taoísmo, a verdadeira fonte da vida?
As práticas xamânicas reconhecem desde sempre um valor mágico muito real ao vazio uterino. Nos famosos relatos de Carlos Castaneda, o feiticeiro Don Juan lamenta que as mulheres só usem o útero para a reprodução, ignorando totalmente as suas inúmeras potencialidades espirituais. No útero, as mulheres podem gerar e armazenar o poder da vida ou da morte – o poder de Kali, a negra – a criação e a destruição. Mas quantas mulheres desconhecem o poder dos seus úteros, ou sequer o consideram como algo mais do que um instrumento útil numa única situação, e um embaraço em todas as outras?
O coração é nobre, os pulmões têm uma bela função, e a maior parte dos órgãos têm a sua dignidade reconhecida. Entre eles, o útero deveria reinar, pelo menos a par do coração (entre algumas antigas culturas tribais, as mulheres foram reconhecidas como aquelas que têm dois corações). Em vez disso, não é socialmente aceite que uma mulher mencione o útero em público, e muitas vezes nem mesmo entre outras mulheres. O útero, e tudo que dele advém, é indesejável durante a maior parte da vida, e muitos médicos advogam a sua ablação sempre que não se desejam mais filhos. Segundo a Dra. Christiane Northrup, só nos Estados Unidos 600,000 mulheres fazem histerectomias todos os anos, e a maior parte destas operações são desnecessárias.
Em vez de temê-lo ou ignorá-lo, as mulheres fariam melhor se tentassem conhecer este lugar misterioso que guardam em si. O primeiro segredo do útero é que ele é muito mais do que as suas paredes, aquilo que podemos ver e tocar: é sobretudo o espaço que estas paredes cercam, a realidade eterna, imutável, não-formada e silenciosa que serve de pano de fundo a toda a Criação e, por inerência, a toda a criatividade. Nele é concebida e gerada toda a “matéria”, incluindo a matéria dos nossos sonhos.
Para além de um segundo coração, o útero é também um segundo cérebro; mas é um cérebro onde domina o hemisfério direito, o lado não-linear, intuitivo, sintético, emocional, abrangente, imagético.
Em todas as meninas se deveria celebrar a maravilha da existência de um útero, da mesma forma que aos rapazinhos a sociedade ensina a terem orgulho nos órgãos masculinos. E todas as mulheres deveriam considerar a saúde e equilíbrio do seu útero como uma responsabilidade sua, e não apenas como uma obrigação médica. É preciso compreender que o conhecimento do ciclo menstrual, sempre que tal seja possível, faz parte do conhecimento de si – esse “santo graal” da psicologia moderna, que é em essência o cerne de toda a espiritualidade tradicional e o mais profundo destino do ser humano. O conhecimento de si é algo integral, que não respeita apenas à psique ou alma. Desprezar o corpo como algo inferior e indigno do auto-conhecimento corresponde a um desenraizamento que, a longo prazo, seria mortal para o homem.
Meditar sobre o útero é meditar sobre o abismo cósmico onde nasceu toda a Vida. Honrá-lo em si é honrá-lo fora de si, e criar a partir dele é criar a partir do próprio Universo. Por toda a eternidade Deus jaz numa cama de parto, dando à Luz. A essência de Deus é dar à Luz, dizia Meister Eckhart, o mais belo dos místicos medievais. Em cada uma de nós existe este espaço sagrado onde a energia se torna matéria, iluminando o mundo. De que mais magia necessitamos, quando a magia é o próprio funcionamento da realidade?

quinta-feira, 15 de março de 2012

Limpezas da Primavera - para limpar a casa e a alma

Iluminura medieval - Dama no jardim
Até há algumas décadas, uma publicação destinada ao público feminino dedicaria uma larga parte do seu conteúdo à limpeza e organização do lar. Hoje em dia, pelo contrário, muitas mulheres ficariam ofendidas diante da sugestão de que a arrumação da casa lhes pertence por norma – a não ser que vivam sozinhas, como é evidente. Mas a nossa casa é muito mais do que uma série de quartos partilhados (ou não) com a família mais íntima. A nossa casa é também aquilo que ela representa nos nossos sonhos: uma imagem dos vários aspectos de nós próprios (um carro, por outro lado, representa nos sonhos o nosso corpo e a nossa capacidade de dirigir e controlar a própria vida).
A nossa casa reflecte a nossa vida, e é um espelho do estado do nosso ser, da nossa mente e das nossas emoções. Mas o contrário é igualmente verdadeiro: a nossa mente e as nossas emoções também reflectem o estado da nossa casa, e é graças a isso que as limpezas são terapêuticas, como bem sabemos. Já Aristóteles afirmava que o que é produzido no microcosmo também se produz no macrocosmo, e não há dúvida de que ao limpar a casa também se “limpam” a alma, a mente e as emoções. Deitar fora objectos que evoquem memórias menos agradáveis do passado pode ajudar a devolver-vos uma presença mais forte no presente (na verdade, objectos que evoquem memórias muito agradáveis também contribuem para nos prender ao passado – se as experiências más são cadeias de chumbo, as experiências boas são cadeias de ouro). Para mais, o planeta Mercúrio inicia o seu movimento retrógrado a 12 de Março, trazendo de volta questões antigas que exigem resolução, e sugerindo-nos uma incursão aos baús empoeirados – os reais e os da memória.
A 20 de Março o Sol entra em Carneiro, marcando a entrada da nova estação, e empurrando-nos com mais força ainda para as grandes limpezas da primavera – exteriores e interiores. Este impulso será amplificado no dia 24 pela conjunção entre Urano e o Sol. Como o fim do mês será talvez um pouco mais cansativo, aproveitem bem estes dias!
Mas antes de começarmos as arrumações, aproveitando a energia e o embalo da Primavera, seria útil começar por olhar à volta e observar com atenção o retrato instantâneo que nos é oferecido pelo estado da casa. Não interessa se ainda não deu para fazer a cama, ou se esta semana a pilha de roupa se amontoou: no fundo, todas sabemos o que costuma “andar” e o que está há muito estagnado. Mas é importante ter atenção aos detalhes, muitas vezes bem reveladores – e ás vezes tirar uma foto ajuda muito na altura de fazer uma análise desapegada do cenário.
Como está cada quarto?
Se está desarrumado, diriam que é “vivido” ou caótico? Está sujo? Serve de arrumação para objectos que não pertencem aí? Existe desarrumação oculta?
Se está arrumado, tentem perceber se a ordem pode ser entendida como excessiva – por exemplo, pode parecer um museu, ou estar tão imaculado quanto um quarto de hospital – ou se é simplesmente organizado.
Sentem-se representadas nele? Se for partilhado, reflecte e serve bem a todas as pessoas que nele dormem, ou reflecte principalmente o gosto de uma delas? Investem nele o suficiente, ou está um pouco abandonado, talvez desolado, com paredes ou chão despidos? É confortável? Sentem-se em casa nele? Apetece estar na sala de estar? Dorme-se bem no quarto de dormir?
Quarto a quarto, podemos descobrir assim que partes da nossa vida precisam de um toque (ou de uma larga campanha de obras). Para alguns, o seu quarto de dormir é o centro de tudo; outros reservam-no para o sono e investem principalmente na sala, ou fazem da cozinha o cerne da vida familiar. Porém, todas as dependências devem ter um lugar equilibrado nas nossas casas, da mesma maneira que é preciso na nossa vida equilibrar a profissão, os amigos e a vida social, a intimidade, a família, a relação de casal, a relação com os filhos, os espaços e momentos de lazer, a privacidade e a vida interior, o cuidar do corpo, a saúde e a nutrição.
Se nos queixamos de não ter ou de não conseguir fazer prosperar uma relação a dois, ou uma vida social satisfatória, entre outros exemplos, podemos começar por olhar à volta e identificar as zonas onde nos estamos a boicotar a nós mesmos. Dizer que se deseja um grande amor, mas manter no quarto uma cama de solteiro, ou encher cada canto com tralha nossa, não deixando qualquer espaço para o outro, não significa tanto que a energia da casa vá afastar um potencial candidato – embora isso também possa acontecer – mas significa certamente que algures dentro de nós a vontade de partilhar não é mais forte do que o egocentrismo, a territorialidade, ou até o medo da entrega. Instalar uma cama de casal, esvaziar simbolicamente uma gaveta, moderar as manifestações excessivas dos nossos gostos pessoais, nada disto é um remédio milagroso, espécie de mezinha que vai trazer uma alma gémea à nossa porta, mas é pelo menos uma demonstração do nosso empenho em abrir a casa e a vida, e da nossa consciência aumentada.
Também não parece muito coerente lamentarmos os quilos a mais, a energia em baixo ou a saúde instável enquanto a nossa cozinha for o espaço mais negligenciado da casa. Não se trata apenas da sujidade ou da desarrumação; uma despensa ou um frigorífico vazios, ou então cheios de alimentos pouco saudáveis e nutritivos, não indiciam nada de bom... Mais uma vez, não é tanto a “energia” da cozinha que nos rouba a saúde e a boa forma, mas – como é evidente – esta divisão espelha bem o nosso investimento e compromisso com uma área fundamental da vida. Uma mudança exterior pode ser o primeiro passo para uma mudança interior, e uma cozinha bem cuidada e abastecida torna muito mais fácil o início de uma nova forma de relacionamento com a nossa saúde.
E se forem daquelas pessoas muito organizadas, cuja casa nunca precisa verdadeiramente de uma campanha de limpezas a sério? Bem, podem sempre usar essa vantagem para sentar e relaxar – e talvez seja exactamente isso que a vida vos pede que façam finalmente – ou então podem mudar alguma coisa em cada quarto, ou até a decoração toda… afinal, a vida é mudança constante.
É certo que no Oriente tudo isto é conhecido há muito – mas, com ou sem cursos de Feng Shui, tudo o que precisamos é de uma boa dose de sensibilidade e bom senso, como diria Jane Austen.

terça-feira, 13 de março de 2012

Equinócios - o Universo em equilíbrio

Joanna Powell Colbert, The Wheel, Gaian Tarot
Os equinócios são portais cuja travessia nos permite ascender a um estado de consciência mais elevado e a um mais profundo conhecimento de nós próprios. Pedem-nos que deixemos partir tudo o que já não nos serve, abrindo assim espaço para o novo, que podemos então acolher de todo o coração.
  
Os equinócios (de aequus, ou igual, e nox, ou noite) são, como o nome indica, períodos nos quais a noite dura o mesmo tempo que o dia, ou seja, 12 horas. O equinócio é, a todos os títulos, um momento excepcional no ano, quando o Sol, centro do nosso sistema e sustento de toda a vida no planeta, determina o equilíbrio perfeito dos pratos da balança cósmica. Pelo menos por um instante, o instante equinocial, todas as possibilidades estão suspensas na mais instável e delicada das harmonias.
Em Portugal continental o momento mágico do Equinócio da Primavera terá lugar este ano às 5.14h do dia 20 de Março, embora só seja celebrado no dia 21, primeiro dia do signo do Carneiro, início do Ano Astrológico, Dia Mundial da Infância, Dia Mundial da Árvore e da Floresta, Dia Mundial da Poesia, e Dia da Mãe numa série de países que escolheram associar os festejos da maternalidade com a Primavera. Poucos dias depois, a 25 de Março (nove meses exactos antes do Natal), celebra-se a festa  da Anunciação, ou aparição do anjo Gabriel  à Virgem, momento no qual Maria concebeu do Espírito Santo e o filho divino encarnou no seu ventre. Assim se liga também o Equinócio da Primavera, feminino e maternal, ao Solstício de Inverno, a mais mística das festividades solares.
A partir deste momento, a luz ganha a batalha contra a escuridão invernal, e toda a Terra celebra a morte do ano velho e a entrada num novo ano – embora por vezes, afirmam alguns, esta vitória da Luz não se faça sem grandes perigos e agitação, associando-se os momentos equinociais ao recrudescimento de guerras, sublevações e catástrofes naturais. Afinal, dificilmente se abandona um sistema por outro sem algum sofrimento e resistência.
Kris Waldherr, Perséfone e a Romã
Esta é a época em que, conforme as nossas crenças e inclinações naturais, festejamos a morte e ressurreição de Jesus, filho e fruto de Maria, ou então o regresso de Perséfone, a Donzela, do mundo subterrâneo, também ela símbolo da alma renascida após uma descida às profundezas da materialidade. Este é o momento de triunfo da Aurora, da Estrela da Manhã, de Astarte, Ísis, Afrodite, Deméter e Maria, quando a Natureza carregada com as suas primícias se revela num festival de abundância, sabores, cores e perfumes sem par. Este é o tempo da Deusa fértil, dando à luz os rebentos infinitamente variados de toda a Criação, e é também o tempo dos seus filhos sagrados, sejam Cristo, Adónis, Osíris ou Dionísio, em cada ano mortos como a vegetação mas destinados a renascer em cada Primavera.
Nesta altura do ano temos a oportunidade, mas também o dever, de fazer uma verdadeira Limpeza da Primavera nas nossas vidas. Planear uma limpeza ou organização da casa, ou de algum aspecto do nosso quotidiano, pode ser uma boa maneira de dar início ao processo. A energia equinocial apoia-nos neste momento, quando despertamos da letargia invernal ávidos de luz, de ar puro e de beleza. Trata-se de deixar entrar essa luz e ar e de criar essa beleza também em nós e no mundo que nos rodeia, pelo qual somos responsáveis, e que, sendo um Cosmos em miniatura, é símbolo do Universo inteiro. Sejamos nós também Criadores, parceiros da Natureza, e exultantes com a nossa própria Criação, por mais modesta que pareça.
O ideal seria que esta limpeza, semelhante ao “fazer o ninho” dos pássaros e àquele irresistível impulso de arrumação do quarto e das roupinhas do bebé que as grávidas costumam sentir algum tempo antes do parto, fosse realizada como preparação para esta época. Assim poderíamos receber condignamente o Novo nas nossas vidas, venha ele sob que forma vier. Quem arruma por fora também arruma por dentro… mas disso falaremos num próximo texto.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Tenho fases, como a lua - A Lua Cheia

Ann-Julie Aubry, Melancholia
Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…*

Não é difícil compreender porque é que a Lua ocupa um lugar tão importante na história da cultura humana, sendo objecto de inúmeros mitos, lendas e crenças. O magnífico disco de prata que se levanta nos céus quando o Sol se esconde, com o seu mistério nocturno e as mutações que continuamente o animam, desperta desde tempos imemoriais tanto assombro e deslumbramento quanto o próprio astro-rei. Feminino por natureza, é assim possível dizê-lo, porque é feminina a sua perfeita forma redonda (enquanto o Sol é mais luz do que forma), feminina a sua cor argêntea e fria, femininas as suas alterações mensais, feminina a doçura da sua luz, feminino o berço ou a barca do crescente, feminino o jogo da ocultação e a fuga encenada à flamejante estrela do dia. Senhora das marés, rege naturalmente toda a água em nós, e particularmente as águas do feminino: as límpidas águas uterinas, que rebentam sob a influência reveladora e magnética da Lua Cheia, e as rubras águas menstruais, cíclicas como as ondas. Associada aos domínios enigmáticos do inconsciente, e até das suas pulsões mais irracionais, a sua luz pálida despertaria o lunático, o aluado, o lobisomem (o lobo dentro de cada homem) e os terramotos e erupções vulcânicas, dentro e fora de nós, provocando também ataques epilépticos e crises histéricas.
Seja no domínio da Ciência, no da Astrologia, ou do Esoterismo em geral, todos estão de acordo que a Lua influencia a Terra e a vida que nela existe. Sucedem-se os estudos que demonstram não existir, ou ser mínima, a influência da Lua Cheia no aumento de partos, de crime violento, de suicídios ou de crises psiquiátricas, mas muitos dos que trabalham num hospital, numa maternidade ou numa esquadra de polícia garantem que nos dias mais caóticos é quase sempre certa a associação a esta fase lunar. Seja esta uma avaliação objectiva ou subjectiva (e quando falamos da Lua o subjectivo ganha valor acrescentado), o facto é que sentimos o mundo à nossa volta, ou mesmo dentro de nós, afectado pelas luas.
As marés são causadas por nada mais do que a atracção gravitacional do Sol e da Lua, mas principalmente desta última, pois embora a sua massa seja muito menor que a do Sol ela está muito mais próxima da Terra. O corpo humano é constituído por cerca de 75% de água, e esta água, ainda que não possa demonstrar as dramáticas alterações em grande escala que são as marés oceânicas, há-de participar deste movimento na sua escala pessoal: o efeito da gravidade diminui com a distância e as massas envolvidas, mas nunca desaparece. E, sendo que as marés se sucedem duas vezes por dia, não seria de espantar que uma tal alteração de equilíbrio – porque é disso que se trata – nos afectasse também duas vezes por dia. Mas a sensação depende, evidentemente, da precisão do mecanismo que a capta, e algumas de nós são sem dúvida mais sensíveis do que outras, especialmente diante de uma Lua Cheia.
A propósito da sensitividade, não deixa de ser curioso verificar que um dos estudos científicos que provou uma correlação entre a Lua Cheia e a vida na Terra respeita aos animais: aparentemente, este sofrem mais acidentes e envolvem-se em mais situações de risco nestas noites, exigindo cuidados veterinários em percentagens que variam entre cerca de 25%-30% mais elevadas do que no resto do mês, e agredindo mais vezes os seres humanos. Teremos nós perdido uma sensibilidade aos efeitos das lunações que os animais conservam? Não seria de espantar, uma vez que as pessoas com alterações psicológicas, mesmo as mais ligeiras, costumam estar pesadamente medicadas, e as mulheres grávidas cada vez fazem mais cesarianas e partos induzidos, não estando portanto disponíveis para a influência da Lua.
Para aquelas (e aqueles) para quem os estudos científicos, por mais importantes que sejam, não resolvem o problema pessoal da sua sensibilidade à Lua, será interessante saberem que os psíquicos consideram a existência de algo a que poderíamos chamar sensitividade lunar, cujo pico é precisamente a Lua Cheia. Para além dos sensitivos, as crianças serão particularmente susceptíveis a esta influência, podendo manifestar mais instabilidade, mudanças de humor ou agressividade. Para todos os afectados, os “sintomas”, de forma geral, são sempre os mesmos: alterações de humor ou de energia, por vezes drásticas, maior sensibilidade psíquica (sonhos abundantes, vívidos e perturbadores, premonições, etc.) e grande sensibilidade emocional, ligeira depressão, sentimentos de solidão, abandono e medo, muitas vezes irracionais e injustificados, mas ainda assim persistentes. Os dias imediatamente anteriores a uma Lua Cheia, bem como o seu auge, podem trazer um ligeiro mal-estar e falta de clareza, ou até chegar a equivaler à travessia de um pequeno inferno pessoal. Ao contrário, mas pelas mesmas razões, outras pessoas sentirão uma onda de energia que exige expressar-se, sendo mesmo possível dizer que a Lua Cheia amplifica tudo o que transportamos em nós no momento, seja positivo ou negativo…
Fisicamente, o corpo é simbolicamente puxado a um limite. Embora fosse natural imaginar que esta é a altura certa para se sentir inchaço, retenção de líquidos ou ganho de peso, a verdade é que na Lua Cheia a pressão atmosférica é maior, e é mais provável que nos sintamos “comprimidas”, como se a água no nosso corpo ficasse mais espessa, causando dores no corpo, dores de cabeça, stress e sensação de opressão, enquanto que na Lua Nova os líquidos sujeitos à pressão mínima podem enfim expandir-se.

O que nos pede, então, esta bela mas por vezes difícil fase da lua?

Acima de tudo, a Lua Cheia traz à superfície e exibe diante da consciência tudo o que estava oculto. Logo, uma das razões do nosso mal-estar poderá ser o facto de estarmos a lidar com ideias, fantasias e especialmente emoções inconscientes ou reprimidas, que lutam para serem reconhecidas e libertadas. Esta libertação é fundamental, porque a Lua Cheia exige justamente que deixemos partir o que já não tem lugar dentro de nós, da mesma forma (e por vezes com a mesma dor) que um parto ou uma erupção vulcânica.
Mas o segredo para sobreviver à sensitividade lunar é seguramente deixar-se guiar por ela, obedecendo aos ensinamentos dos seus ciclos.
Ter uma boa noção de como a Lua nos afecta pode ser precioso nos momentos mais difíceis. Manter um “diário da Lua” significa que podemos comparar as nossas reacções ao longo dos meses conforme as fases lunares, e desdramatizar assim os períodos mais confusos e emotivos. Sabendo de antemão que fase pessoal nos aguarda, podemos também tentar planear os dias conforme as nossas necessidades de repouso, acção, companhia ou solidão.  
É sensato aprender a trabalhar com a sensitividade que possuímos, em vez de o fazer contra ela (ou fugindo dela). Possuir um mecanismo interno mais sensível à recepção da informação do exterior é em si algo maravilhoso, e os problemas só surgem quando não sabemos como lidar com esta informação. Acima de tudo, cultivemo-nos como à própria terra: na Primavera planta-se, no Outono colhe-se; no quarto minguante ou na Lua Nova semeiam-se raízes (diz o povo que nesta fase da Lua “as coisas que crescem para fora minguam, e as coisas que crescem para dentro vigoram”), no quarto crescente poda-se, na Lua Cheia colhem-se os frutos. Como na passagem bíblica, trata-se de aprender a viver de acordo com os ciclos da Natureza e do Universo: para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que  se deseja debaixo do céu (Ecl. 3:1-8).
A lição da Lua é a paciência.

*Cecília Meireles, Lua Adversa

quinta-feira, 8 de março de 2012

Lua Cheia - o verdadeiro Dia da Mulher

 Constelação da Virgem

Hoje, dia 8 de Março, Dia da Mulher, temos uma Lua Cheia em Virgem (exacta às 9.40h, hora de Lisboa), e uma tempestade solar, a mais forte dos últimos 6 anos. O sol estará em Peixes, signo oposto à Virgem, até 20 de Março, pelo que a lua cheia vem fazer um conjunção particularmente forte com o sol neste dia especial, ainda que não necessariamente fácil.

Uma Lua Cheia representa sempre uma época de culminação, e a promessa (ou o potencial) de realização de quanto foi começado na Lua Nova. Só por si, este é um tempo particularmente emocional. Sob a luz mágica da lua cheia tendemos a focar-nos em romances e em relacionamentos mais íntimos, e os sonhos e intuições podem tornar-se mais vívidos e prementes.
Desta vez, a lua ilumina o eixo Virgem-Peixes, exigindo que encontremos equilíbrio entre as rotinas e obrigações do dia-a-dia, a saúde física e a necessidade de ordem (Virgem) e a nossa visão e necessidades interiores, saúde espiritual e capacidade de expansão das barreiras (Peixes). Por um lado, poderemos ter de lidar com factos aparentemente consumados trazidos pela vida; por outro, somos chamados a depositar a nossa fé no desconhecido, em algo superior a nós.
O caminho é de integração, e não de escolha. Factos, sim, mas também fé. Aceitar as coisas que não posso mudar, mudar aquelas que estão ao meu alcance, e… acreditar na ordem e na beleza do Universo.
Mas até lá chegar, esta tensão pode despertar algumas crises interiores. Aceitemo-las também, porque nos vêm mostrar com mais clareza aquilo de que o nosso verdadeiro Eu necessita (e geralmente não tem), dando-nos ao mesmo tempo uma oportunidade para examinar as nossas carências e melhor compreender as nossas necessidades emocionais.
Esta lua pede-nos equilíbrio entre Trabalho e Serviço, ou seja, entre o cumprimento das obrigações e a dádiva pura e desinteressada, entre o fazer para nós e o fazer para os outros. Podemos entender isto numa escala mais ou menos grandiosa, mas muitas vezes bastará olhar para os pequenos gestos do quotidiano: apenas neste dia, apenas neste momento, fazer o pequeno-almoço para um filho é obrigação ou serviço?
Outras das facetas desta lunação é ajudar-nos a equilibrar o criticismo virginiano e a tolerância e aceitação piscianos, compreendendo que cada uma destas atitudes tem o seu tempo e o seu espaço próprio, e que em nós ambas devem conviver de forma justa e amorosa. O mesmo para a necessidade de controlo e a confiança, assuntos tão complicados para muitas de nós…

A nível muito prático (olá, Virgem), este é um bom dia para fazer um auto-exame a nível emocional, identificar necessidades interiores, e depois fazer algo por nós: exprimir emoções – algo muito importante numa lua cheia – e procurar a cura das nossas feridas, em vez de ficar apenas a lambê-las e a sonhar com a perfeição. Vamos começar por usar a capacidade intuitiva de Peixes, e depois aplicar o pragmatismo virginiano. Vamos confiar onde nada podemos fazer, e agir, onde a acção estiver ao nosso alcance. Vamos identificar falhas, perdoá-las (a nós e aos outros), e depois corrigi-las onde for possível.

Em casa, é altura de arrumar, limpar, libertar os espaços de tudo quanto guardamos em excesso, e fertilizar a terra (ou o nosso corpo, ou a nossa imaginação).

Por fim, lembremo-nos que a conjunção de Mercúrio (comunicação e capacidade intelectiva) e Urano (intuições mentais fulgurantes), que ocorre paralela à lua cheia (revelações) e até à tempestade solar (iluminação), pode contribuir muito para um súbito ganho de consciência acerca de um assunto ou de uma situação cuja existência possivelmente até ignorávamos. Podemos esperar receber informações ou ter revelações súbitas e inesperadas. O que vier virá por bem.