terça-feira, 10 de julho de 2012

Do amor de si ao Amor universal



Segundo o Antigo Testamento, Moisés recebeu as duas Tábuas da Lei com os Dez Mandamentos de Deus no sopé do Monte Sinai. O décimo primeiro mandamento foi dado por Cristo, e é enunciado desta forma: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. E esta é provavelmente a frase curta que menos pessoas conseguem ler até ao fim.

Amar ao próximo soa nobre, generoso, digno de louvor. Amá-lo como a nós mesmos significa desejar para ele o que queremos para nós, e também isto parece correcto e louvável. Mas é verdadeiramente disto que fala Cristo, e com ele todos os grandes mestres da humanidade? Podemos realmente ver o significado mais profundo desta frase simples e lapidar – que o amor ao outro parte do amor por nós próprios, e que sem este o movimento do coração em direcção ao “próximo” é impossível?

Falar no amor de si resulta sempre em duas formas de (in) compreensão: ou nos referimos ao “amor-próprio”, na acepção positiva que lhe dá a psicologia moderna, ou nos referimos a uma atitude egocêntrica e patológica. O amor-próprio é a auto-estima dos psicólogos, que diversas abordagens psicoterapêuticas pretendem reforçar. Este trabalho feito ao nível da psique, ainda que possa ajudar grandemente alguns pacientes, é na realidade um reforço das estruturas do ego, como se pode ver facilmente através do jargão utilizado: auto-expressão, auto-afirmação, auto-realização, e até “egoísmo positivo”. Fora deste contexto psicoterapêutico, prevalece a noção de que amar-se a si próprio antes de tudo é uma atitude basicamente egocêntrica, ou no mínimo com uma validade espiritual muito inferior ao caminho do amor ao próximo.

Mas o caminho é um só, e amar-se a si próprio antes de tudo não é o mesmo que amar-se a si próprio acima de tudo. O caminho principia com o amor de si (oposto do egocentrismo e da vaidade) e culmina no amor dos outros (Arnaud Desjardins). E a explicação para isto é muito simples. O amor verdadeiro é uma dádiva integral; não é um empréstimo, não é retomável, não cobra juros e não se dá pela metade. Amar não é para todos. Só pode amar quem tiver amor disponível e em abundância, para dar sem ter de pedir de volta e sem precisar de nada em troca. Só os ricos em amor podem amar. Os restantes – quase todos nós – são indigentes do amor, pobres mendigos que morreriam se dessem a sua única, preciosa migalha ao próximo. Somos buracos negros do amor, que sugamos a toda a volta. A nossa taça nunca está cheia, e portanto nunca transborda.

O amor de si é o primeiro acto de amor verdadeiro possível a um ser humano. “Amamos” os outros porque precisamos deles desesperadamente – filhos, pais, amigos ou amantes. Mas eles também não possuem amor para dar; quando muito poderão emprestá-lo, geralmente a juros, para tomá-lo de volta um dia. A única solução, que alguns têm a ventura de encontrar após muitas mágoas, é voltarmo-nos para o único ser que, de uma forma ou de outra, nunca nos abandonará: nós mesmos. A fonte do amor e da compaixão não está em nenhum lugar exterior.

Ama-te a ti mesmo para amares os outros (Thich Nhat Hanh). Amarmo-nos, com um amor verdadeiro, não é uma forma de egoísmo. Amarmo-nos é assumirmos a responsabilidade de encher a nossa própria taça, tanto que ela transborde, tanto que possamos enfim dar. Se o nosso corpo precisa de um pão para sobreviver, morremos se o dermos. Só o podemos dar se tivermos dois. Ainda que existam momentos nos quais se justifica que nos sacrifiquemos pelos outros, no dia-a-dia a nossa maior responsabilidade é para connosco; não por egoísmo, mas por dever, primeiro, e por amor, mais tarde. Porque cada um de nós é ao mesmo tempo o cuidado e o cuidador. Cada um de nós é o ser pelo qual somos plenamente responsáveis. E não somos plenamente responsáveis por mais ninguém – nem mesmo pelo filho recém-nascido que embalamos nas madrugadas. Também este é senhor do seu destino individual.

Ama o teu próximo como a ti mesmo. A dolorosa falta de amor do mundo não tem outra raiz senão a imensa falta de amor por nós mesmos. O sofrimento que nos causa a incapacidade de amar, muito mais profundo do que a carência de ser amado, só tem remédio no movimento que nos conduz em direcção a nós mesmos, e na total aceitação de quem somos. Este movimento interno que urge fazer, longe de ser egoísta, é a nossa única salvação. Quem se pergunta, às vezes de forma tão angustiada, como fazer para amar o seu próximo, tem aqui a sua primeira resposta. Amarás o teu filho quando tiveres embalado no teu coração a criança que foste; amarás a tua mulher quando tiveres honrado o homem que és; amarás o próximo quando te amares a ti mesmo.

É da condição humana que o amor por si desponte, tantas vezes, do sofrimento. Quem nunca se testou não se conhece, e quem não se conhece não se pode amar. Na verdade, o primeiro passo para o amor de si é em direcção ao conhecimento de si. Possa eu conhecer-Te, possa eu conhecer-me (Santo Agostinho). Ora, conhecer é estar de olhos abertos diante da verdade. É enfrentar as ilusões, as fantasias, os preconceitos, os “maus” sentimentos, o desamor, as sombras que existem em todos os seres humanos, e reconhecê-las por aquilo que são – uma parte de nós. Este é o caminho da honestidade, o único que abre as portas ao amor de si, e que nos levará a compreender o que significa amar o próximo como a nós mesmos: que nós e o próximo somos um.  

2 comentários:

  1. Absolutamente! Tenho vivido cada vez mais esta verdade, e noto como o amor começa a fluir mais na minha vida, não compreendia como me sentia bloqueada em termos de sentir amor e foi através de um percurso pautado por sofrimento emocional que me obrigou a começar a ter mais cuidado, consideração e amor por mim, que também tem sido possível sentir-me cada vez mais próxima do outros, amá-los e aceitá-los nas suas imperfeições, que afinal são reflexo da minha própria imperfeição.

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    1. Que experiência tão bonita, Isabelle. A imperfeição não é um obstáculo para o Amor. Podemos amar seres imperfeitos; só não podemos amar seres a quem não aceitamos plenamente - incluindo as suas imperfeições. A começar por nós.

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