Segundo
o Antigo Testamento, Moisés recebeu as duas Tábuas da Lei com os Dez
Mandamentos de Deus no sopé do Monte Sinai. O décimo primeiro mandamento foi
dado por Cristo, e é enunciado desta forma: Amarás ao teu próximo como a ti
mesmo. E esta é provavelmente a
frase curta que menos pessoas conseguem ler até ao fim.
Amar ao próximo soa nobre, generoso, digno de louvor. Amá-lo como
a nós mesmos significa desejar para ele o que queremos para nós, e também isto
parece correcto e louvável. Mas é verdadeiramente disto que fala Cristo, e com
ele todos os grandes mestres da humanidade? Podemos realmente ver o significado
mais profundo desta frase simples e lapidar – que o amor ao outro parte do amor
por nós próprios, e que sem este o movimento do coração em direcção ao
“próximo” é impossível?
Falar
no amor de si resulta sempre em duas formas de (in) compreensão: ou nos
referimos ao “amor-próprio”, na acepção positiva que lhe dá a psicologia
moderna, ou nos referimos a uma atitude egocêntrica e patológica. O amor-próprio
é a auto-estima dos psicólogos, que diversas abordagens psicoterapêuticas
pretendem reforçar. Este trabalho feito ao nível da psique, ainda que possa
ajudar grandemente alguns pacientes, é na realidade um reforço das estruturas
do ego, como se pode ver facilmente através do jargão utilizado: auto-expressão,
auto-afirmação, auto-realização, e até “egoísmo positivo”. Fora deste contexto
psicoterapêutico, prevalece a noção de que amar-se a si próprio antes de tudo é
uma atitude basicamente egocêntrica, ou no mínimo com uma validade espiritual
muito inferior ao caminho do amor ao próximo.
Mas
o caminho é um só, e amar-se a si próprio antes
de tudo não é o mesmo que amar-se a si próprio acima de tudo. O caminho
principia com o amor de si (oposto do egocentrismo e da vaidade) e culmina no
amor dos outros (Arnaud Desjardins). E a explicação para isto é muito
simples. O amor verdadeiro é uma dádiva integral; não é um empréstimo, não é
retomável, não cobra juros e não se dá pela metade. Amar não é para todos. Só
pode amar quem tiver amor disponível e em abundância, para dar sem ter de pedir
de volta e sem precisar de nada em
troca. Só os ricos em amor podem amar. Os restantes – quase
todos nós – são indigentes do amor, pobres mendigos que morreriam se dessem a
sua única, preciosa migalha ao próximo. Somos buracos negros do amor, que
sugamos a toda a volta. A nossa taça nunca está cheia, e portanto nunca
transborda.
O
amor de si é o primeiro acto de amor verdadeiro possível a um ser humano.
“Amamos” os outros porque precisamos deles desesperadamente – filhos, pais,
amigos ou amantes. Mas eles também não possuem amor para dar; quando muito
poderão emprestá-lo, geralmente a juros, para tomá-lo de volta um dia. A única
solução, que alguns têm a ventura de encontrar após muitas mágoas, é
voltarmo-nos para o único ser que, de uma forma ou de outra, nunca nos
abandonará: nós mesmos. A fonte do amor e da compaixão não está em nenhum lugar
exterior.
Ama-te a ti mesmo para amares os
outros (Thich Nhat Hanh). Amarmo-nos,
com um amor verdadeiro, não é uma forma de egoísmo. Amarmo-nos é assumirmos a
responsabilidade de encher a nossa própria taça, tanto que ela transborde, tanto
que possamos enfim dar. Se o nosso corpo precisa de um pão para sobreviver, morremos
se o dermos. Só o podemos dar se tivermos dois. Ainda que existam momentos nos
quais se justifica que nos sacrifiquemos pelos outros, no dia-a-dia a nossa
maior responsabilidade é para connosco; não por egoísmo, mas por dever,
primeiro, e por amor, mais tarde. Porque cada um de nós é ao mesmo tempo o cuidado e o cuidador. Cada um de nós é o ser pelo qual somos plenamente
responsáveis. E não somos plenamente responsáveis por mais ninguém – nem mesmo
pelo filho recém-nascido que embalamos nas madrugadas. Também este é senhor do seu destino individual.
Ama o teu próximo como a ti mesmo. A dolorosa falta de amor do mundo não tem outra
raiz senão a imensa falta de amor por nós mesmos. O sofrimento que nos causa a
incapacidade de amar, muito mais profundo do que a carência de ser amado, só
tem remédio no movimento que nos conduz em direcção a nós mesmos, e na total
aceitação de quem somos. Este movimento interno que urge fazer, longe de ser
egoísta, é a nossa única salvação. Quem se pergunta, às vezes de forma tão
angustiada, como fazer para amar o seu próximo, tem aqui a sua primeira
resposta. Amarás o teu filho quando tiveres embalado no teu coração a criança
que foste; amarás a tua mulher quando tiveres honrado o homem que és; amarás o
próximo quando te amares a ti mesmo.
É
da condição humana que o amor por si desponte, tantas vezes, do sofrimento.
Quem nunca se testou não se conhece, e quem não se conhece não se pode amar. Na
verdade, o primeiro passo para o amor de si é em direcção ao conhecimento de si.
Possa eu conhecer-Te, possa eu
conhecer-me (Santo Agostinho). Ora, conhecer é estar de olhos abertos diante
da verdade. É enfrentar as ilusões, as fantasias, os preconceitos, os “maus”
sentimentos, o desamor, as sombras que existem em todos os seres humanos, e
reconhecê-las por aquilo que são – uma parte de nós. Este é o caminho da
honestidade, o único que abre as portas ao amor
de si, e que nos levará a compreender o que significa amar o próximo como a
nós mesmos: que nós e o próximo somos um.
Absolutamente! Tenho vivido cada vez mais esta verdade, e noto como o amor começa a fluir mais na minha vida, não compreendia como me sentia bloqueada em termos de sentir amor e foi através de um percurso pautado por sofrimento emocional que me obrigou a começar a ter mais cuidado, consideração e amor por mim, que também tem sido possível sentir-me cada vez mais próxima do outros, amá-los e aceitá-los nas suas imperfeições, que afinal são reflexo da minha própria imperfeição.
ResponderEliminarQue experiência tão bonita, Isabelle. A imperfeição não é um obstáculo para o Amor. Podemos amar seres imperfeitos; só não podemos amar seres a quem não aceitamos plenamente - incluindo as suas imperfeições. A começar por nós.
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