sábado, 30 de junho de 2012

Esta carta não está virada ao contrário

A minha avó é que achava que sim. Também não se trata de um rapaz que bebeu demais e agora tenta fazer o quatro, a ver se se equilibra. A minha avó, na verdade, achava que era um jovem de revoltos cabelos azuis e ar apático, a treinar para os Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1979, com um fatinho adquirido numa loja popular de Bucareste.

Mas eu vou analisar a carta na posição correcta, com o XII por cima e o título em baixo: Le Pendu – O Dependurado.

Esta carta é muito minha conhecida. Passa a vida a sair-me e passa a vida a sair nas leituras das pessoas sérias deste mundo. Deve ter sido inventada ao mesmo tempo que a burocracia e as repartições de finanças.

Uma coisa que eu gostava de explicar é que a vida, sendo séria, não é assim tão séria. Outra, é que existem cerca de cento e vinte razões para uma pessoa se colocar de cabeça para baixo. Os Jogos Olímpicos de Moscovo, os Jogos Olímpicos de Los Angeles, os de Londres. Isto só no âmbito dos argumentos disparatados e sem lógica. Outra razão pode ser uma posição de ioga. Outra, uma pedrinha entalada na garganta e, virando-se a pessoa ao contrário, a pedrinha solta-se e é cuspida num raio de cinco metros. Outra, embora de repente isto não me faça sentido nenhum, pode ser uma quebra de tensão: pessoa outra vez virada ao contrário e, em dois segundos e meio, valores sistólicos normalizados. Mas, a mais plausível, talvez seja um amuo do género: “Agora não saio desta posição enquanto a Sara Raquel não voltar para mim e o dono do café não me readmitir ao serviço, na próxima segunda-feira”. Diga-se de passagem que com este espírito não se ganham medalhas de oiro nos Jogos Olímpicos, mas a mim não me cabe julgar a vida do rapaz.

E já me está a parecer que esta análise resvala para um certo simplismo.

Independentemente do corte e do colorido do seu fato e do seu tom de cabelo, a figura tem um dos pés atado por uma corda, real ou imaginária. E se há corda que nos ate os pés, se há corda que nos prenda o pé ao ramo de uma árvore, não pode haver alma que se sinta livre, nem coração que não pese no peito - só uma vontade de libertação que nos atravessa o cérebro no sentido dos quatro pontos cardeais.

Em todas as leituras que já realizei, o dependurado aparece aos que acreditam que a vida é difícil e que as coisas só se conseguem com sofrimento. Eu incluída. Também costuma surgir como aviso de complicações e de demoras. Também pode sentenciar que Carlos Manuel não gosta da consulente. Também costuma anunciar que são necessários 350 papéis para conseguir uma transferência de trabalho.

Mas, às vezes, o Dependurado não fala em nada destas coisas. A sua voz é macia e ele é um yogi, a avisar que não é necessário fazer nada. Que está tudo no destino e que, mesmo o tempo de espera, é um tempo preciso e precioso. Se a minha avó fosse viva diria que “o rapaz, afinal, faz tudo com uma perna às costas”. Também diria que era tempo de respirar fundo, de me inscrever numa nova modalidade desportiva, de pintar os cabelos de azul (esta parte é mentira), e de aguardar pelo momento certo, que é quando as coisas erradas não costumam acontecer.

Mas como a gerência é pragmática e eu é que mando neste texto, quero advertir para grandes secas: vá cedinho, tire a primeira senha e leve uma sanduíche de anchovas para comer às dez da manhã.

Não digo, como a minha amiga Patrícia, que o Dependurado é “um não redondo”. Mas aconselho a que, enquanto espera, repita mentalmente que a vida é simples, a vida é simples, a vida é simples e divertida. Talvez não venha a fazer muitos amigos na sala de espera do Instituto Gama Pinto, que é onde eu estou agora. Mas, tirando o labrador que veio guiar a dona, quem é que quer fazer um amigo que só sabe falar de dioptrias e outras matérias oftalmológicas que me esmagam de ignorância?

E com esta frase desagradável e pretensiosa acabo por hoje a minha mensagem de esperança.

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