sábado, 31 de março de 2012

Peter Pan e a terra dos Meninos Perdidos


Antigamente – palavra que não diz tudo, mas diz o suficiente –, os rapazinhos eram criados pelas suas mães e iniciados pelos seus pais. Isto acontecia em todas as épocas e em todas as culturas, assumindo diferenças meramente contextuais. A criança que a mãe alimentava, de quem cuidava e que protegia no interior do lar era um dia levada pelo pai, ou por quem o representasse, para que lhe fosse apresentado o mundo e o seu papel neste. Os rituais de passagem podiam ser assustadores, sangrentos e dolorosos, ou resumir-se à primeira passagem de uma navalha pela cara quase imberbe. O menino ou jovem adolescente podia ser simplesmente levado à taberna, para provar o primeiro cigarro ou o primeiro copo de vinho ao lado dos mais velhos, ou até acompanhar o pai a um prostíbulo. Seguia-se muitas vezes a introdução ao ofício familiar, quer este fosse o de ourives, o de carpinteiro, ou o de caçador numa floresta equatorial. Estas praxes, que podiam envolver mais ou menos cerimonial, eram certas e seguras. Constituíam um dever a que nenhum progenitor se escusaria, e sem o qual a sociedade não considerava o rapaz apto para assumir o seu futuro e assegurar o bem-estar da comunidade e da sua futura família. Muitas delas não encontram lugar na sociedade moderna, mas significará isso que o princípio que lhe subjaz também perdeu actualidade?
Ninguém duvida de que a energia masculina não é idêntica à feminina. Uma e outra são a base do próprio princípio da Dualidade e de todas as suas expressões. Numa sociedade dita “moderna”, o melhor que podemos esperar da educação das crianças é que seja igual (e igualitária) para meninos e meninas. E está bem assim, caso queiramos permanecer à superfície das coisas. É mesmo a única forma de educação admissível, dadas as contingências e fragilidades do mundo em que vivemos. Porém, se a nossa sociedade fosse fundada e mantida sobre valores mais profundos, saber-se-ia que um menino, sendo essencialmente diferente de uma menina, precisa do reconhecimento dessa diferença para se poder conhecer a si próprio e às suas potencialidades. A ocultação da diferença, mesmo que bem intencionada e tendo como objectivo uma certa noção de igualdade, equivale a um recalcamento dos elementos especificamente masculinos no menino e especificamente femininos na menina, cujo resultado prático é bem visível hoje em dia.
O feminino recalcado, desconhecido e incapaz de se expressar é substituído pela sua infeliz caricatura, que nos assalta a partir de outdoors gigantes onde mulheres de plástico assumem uma “feminilidade” feita para o proveito masculino mais primário, inspirada na pornografia hoje generalizada, que vai insidiosamente governando a vida sexual até de quem não a consome. Quem sabe ainda, hoje em dia, o que é a verdadeira capacidade de sedução do Feminino, sem a confundir com maneirismos, comportamentos e vestuários estereotipados?
Por sua vez, o masculino recalcado resulta numa produção destinada a oferecer às mulheres aquilo que estas supostamente procuram: um homem supersensível e vergado às suas vontades e decisões.
Na verdade, uma jovem que não reconheça o seu lado feminino mais profundo tenderá a adoptar uma feminilidade masculinizada (como o protótipo da “mulher de negócios” ou o da “fêmea sempre disponível”, entre outros), da mesma forma que um rapaz que não reconheça o seu lado masculino mais profundo vai adoptar uma masculinidade efeminada. Para além da natural experimentação e inconvencionalismo que caracteriza a juventude, não pode ser outra a origem dos looks andróginos, da exploração “lúdica” da homossexualidade ou da bissexualidade entre adolescentes, do conceito de metrosexual, e de outras tendências semelhantes.
O reconhecimento da masculinidade num rapaz – que é o verdadeiro propósito das iniciações tradicionais – não lhe dá nada que ele não possua; dá-lhe, isso sim, acesso ao que ele já possui. E esse acesso fica vedado quando a sociedade onde o rapaz cresce, e os modelos masculinos que o rodeiam, não lhe proporcionam esse reconhecimento. Não há nada de verdadeiramente “mágico” num ritual tribal de iniciação, a não ser a maravilha e o poder do reconhecimento do Ser. Qualquer psicólogo moderno poderá confirmá-lo: o que o paciente precisa é de ser ouvido e reconhecido. O reconhecimento do outro é essencial para a nossa auto-imagem, e isto mesmo se passa com o menino que sente tudo em si de forma confusa, desordenada, e precisa que lhe digam que tudo vai bem, que tudo está certo. Que aquilo que sente é natural, e que há um grupo de iguais aos quais se pode juntar. Que não está sozinho. Que é um Homem. Que há um caminho longamente trilhado aberto diante de si.
Porém, hoje em dia cada vez menos meninos são desta forma reconhecidos pelos seus pais. Muitos são educados quase exclusivamente num mundo “feminino” - por uma mãe sozinha, mas também por uma escola feminilizada[1]. Estes meninos são mais parecidos com as suas colegas de carteira, mais sensíveis e mais capazes de se envolverem emocionalmente com os outros, mas (tal como as meninas na mesma situação, educadas para serem “iguais” aos rapazinhos) são sem dúvida menos livres interiormente. Desconhecendo o seu verdadeiro poder, eles são mais frágeis, mais indefesos e mais facilmente manipuláveis por uma sociedade desligada de qualquer valor profundo. Muitos permanecem eternas crianças, procurando nas mulheres uma segunda mãe, e subvertendo totalmente o valor único e o poder mágico da relação entre um homem e uma mulher. Alguns destes homens não se zangam - fazem birras. Coleccionam brinquedos e cansam-se dos brinquedos, buscam o prazer em todas as suas formas, e rejeitam responsabilidades. Outros entregam-se de forma submissa ao domínio das mulheres, talvez desejando fazer o mesmo que os restantes, mas sem coragem para tal. Uns e outros crescem e envelhecem sem saber quem são, e vão moldando uma sociedade onde a virilidade se confunde com o domínio do mais forte, do mais poderoso ou do mais rico. Incapazes de reconhecer e aspirar ao encontro com o verdadeiro Feminino, eles temem as mulheres como super-mães dominadoras e castradoras às quais nada têm para opor, porque o verdadeiro Masculino dorme no seu interior.
Os relacionamentos que assim se estabelecem entre homens e mulheres são tendencialmente frustrantes, muitas vezes governados por uma culpa e por um medo infantis, que, como saberá quem já foi criança, não possuem limites. Estas famílias são também frequentemente dirigidas pelos filhos, cujas actividades e vontades ocupam todos os momentos livres, e cujo bem-estar é colocado acima de toda a razoabilidade. Isto acontece porque tais casais não são compostos por um Homem e uma Mulher, e sim por uma mulher-mãe que tudo governa, e por um homem-filho que se deve submeter aos seus planos, exercendo essencialmente o papel de irmão mais velho dos próprios filhos. A emasculinização do homem é tal que muitas vezes é a própria mulher a preferir uma separação, sabendo no seu íntimo que há algo mais, enquanto ele se conforma com esta conjugalidade disforme e muitas vezes progressivamente dessexualizada, até mesmo quando a sua imaginação (ou mais do que isso) parte em busca de mulheres “femininas” que são muitas vezes apenas a caricatura do Feminino referida anteriormente.
O mundo precisa desesperadamente do regresso do Feminino, mas precisa igualmente de que os homens reconheçam o Masculino em si e o aceitem sem vergonha. A masculinidade não é insensibilidade ou brutalidade – nem no ser humano nem na natureza. É a energia focada e dirigida que tende para o exterior e para a acção no mundo, a força calorosa e gentil que emana da auto-confiança, a segurança e a firmeza que sustentam o Universo e permitem que um bebé repouse inteiramente rendido nos braços de quem o embala. Não impede que o homem se comova com a beleza do mundo, com a música ou a arte, ou com o rosto do seu filho; significa, pelo contrário, que ele não teme nem o mundo, nem a comoção, nem a paternidade. A energia do Feminino é essencial para nutrir a Humanidade, mas a energia do Masculino é fundamental para a conduzir em direcção ao futuro. É necessário que os homens reencontrem em si os arquétipos que lhes pertencem por direito: o Pai, o Amante, o Rei, o Guerreiro, o Mago, o Sacerdote. E que o passem aos seus filhos, para que estes, acima de tudo, saibam quem são.


[1] É geralmente aceite que a escolaridade nos moldes actuais premeia sobretudo comportamentos mais femininos, como o acatamento de regras e da autoridade, longos períodos de silêncio e imobilidade, mais teoria e menos prática, etc.

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