sexta-feira, 23 de março de 2012

A libertação das mulheres e a opressão do Feminino

Deusa Flora, fresco oriundo de Stabia (Villa de Arianna), século I d.C.
Sabemos que desde a Revolução Industrial o estatuto das mulheres na Europa, na América do Norte, e um pouco por todo o globo progrediu muito em direcção à igualdade dos sexos. Muitas foram as causas e as consequências deste movimento, mas o resultado da luta feminina (e feminista) e da evolução de uma sociedade progressivamente mais consciente e esclarecida permitiu que hoje em dia pelo menos a descriminação sexual mais grosseira seja um problema secundário nas vidas de grande parte das mulheres ocidentais.
Não é, infelizmente, o caso de uma imensa maioria de mulheres do Terceiro Mundo, que ainda vivem em desesperantes condições de miséria, submissão, abuso e impotência. Diante do número esmagador e da profundidade do infortúnio diário destas mulheres e meninas, a própria noção de “libertação sexual” soa irrelevante, se não fútil. A maior parte da população feminina vive em zonas pobres do globo, sendo constituída por uma maioria de mulheres iletradas, malnutridas e debilitadas, que carregam inúmeros fardos quotidianos nas suas comunidades, e desde tenra idade.
Muito está ainda por fazer, e não apenas em países menos desenvolvidos, mas também no âmago das sociedades ditas “evoluídas”, e no próprio seio das nossas famílias e comunidades. No entanto, parece verdade que a emancipação da mulher deixou de ser um assunto prioritário no mundo ocidental, que a necessidade e justeza deste processo são universalmente reconhecidas, e que a busca de equidade sexual não mais será abandonada.
No entanto, há que fazer uma distinção fundamental entre os direitos das mulheres como seres humanos, e a condição do princípio feminino no mundo.
Muitas mulheres dirão, socorrendo-se de boas razões, que a “condição feminina” está hoje fortalecida. Certamente que assim é no nosso pequeno mundo, onde meninos e meninas crescem, brincam e estudam juntos; onde o sucesso em qualquer curso ou profissão está ao nosso alcance e ao alcance das nossas filhas; onde a ninguém lembraria pedir a uma mulher o documento assinado pelo pai ou marido autorizando-a a tirar a carta de condução, a viajar ou a votar; onde, enfim, a Lei concede direitos plenos e iguais aos cidadãos do sexo feminino, tal como aos do sexo masculino. Não serão as pequenas (?) desvirtuações diárias deste sistema que porão em causa a sua bondade.
Porém, nada disto significa que o princípio universal feminino esteja igualmente fortalecido, ou que seja sequer reconhecido na sua essência e aceite na sua especificidade. Pelo contrário: a melhoria dos direitos das mulheres foi conseguida, em boa medida, à custa da integração de valores masculinos, e o resultado desta apropriação, ainda que fundamental a nível dos direitos humanos, não pode em caso algum ser equiparado a uma vitória do Feminino. Representa, na melhor hipótese, uma vitória das mulheres e de toda a humanidade, triunfo que ninguém poderia menorizar – mas que custou um elevado preço. Embora queiramos acreditar que todos o voltaríamos a pagar se necessário, a verdade é que chegou o momento de fazer as contas.
A masculinização, nas palavras de uma avó de 90 anos, genuína moradora do bairro lisboeta da Sé, trouxe às mulheres uma certa libertação. Não o poderíamos dizer melhor. Aos 40, educada na igualdade plena mas cada vez mais consciente do preço a pagar, outra mulher reconhece: na maior parte das pessoas, eu incluída, é o masculino que impera.
Vencemos na vida, é certo, mas não à custa da nossa intuição, sensibilidade e receptividade, e muitas vezes nem mesmo à custa da nossa empatia, capacidade de trabalho em grupo, inteligência sintética e criatividade. É muito mais provável que as nossas conquistas tenham estado relacionadas com os conhecimentos académicos demonstrados, capacidade de raciocínio lógico e de análise, objectividade, dinamismo, capacidade de liderança, e uma série de mais-valias de terminologia moderna, como “proactividade” ou “empreendorismo”.
E então, não somos tão capazes nestes domínios quanto um homem?
Certamente que sim, mas não reside aqui a nossa feminilidade.
Na verdade, está generalizada a confusão entre os princípios feminino e masculino e os homens e as mulheres que os vivenciam. Naturalmente, esta confusão ocorre porque as mulheres representam a mais completa encarnação do Feminino, tal como os homens no que respeita ao Masculino. Porém, homens e mulheres não são arquétipos. Ambos possuem aspectos do sexo oposto presentes e operantes na sua biologia e na sua psique, e, recorrendo ao masculino em si (principalmente se o fizer de forma consciente), uma mulher não será menos do que qualquer homem nas áreas tradicionalmente masculinas, da mesma forma que só recorrendo ao seu legado feminino se poderá expressar livremente nas áreas tradicionalmente femininas.
O recurso às competências masculinas conduziu a mulher a uma posição social e económica mais igualitária, mas nada fez pela condição do Feminino. O mundo contemporâneo está seguramente dominado por valores masculinos, que em si mesmos são tão essenciais como a luz do Sol, mas que em excesso, e sem o contrabalanço dos valores femininos, queimam onde deveriam aquecer e cegam onde deveriam iluminar. E este mundo é construído, dia após dia e pedra sobre pedra, por todos nós, homens e mulheres, novos e velhos, ricos e pobres, quase universalmente dominados pela convicção de que a felicidade está guardada para os “empreendedores dinâmicos e proactivos”, os geradores de riqueza material, os notáveis da ciência e da tecnologia, os príncipes da economia e das finanças, os senhores da guerra, os mais fortes, os mais rápidos, os mais espertos. Queremos que os nossos filhos sigam os seus passos e se tornem empresários, gestores, cientistas, médicos e advogados. Criar os filhos, cuidar dos idosos, ser um consumidor consciente, cultivar uma pequena horta, ter hábitos ecológicos, desenvolver projectos comunitários, fazer voluntariado e serviço social, explorar a criatividade e as capacidades pessoais, tudo isso é muito bonito – desde que não roube horas à empresa, nem subsídios aos contribuintes.
Para o bem maior de todos nós, e graças ao esforço de muitos heróis e sobretudo heroínas, as mulheres ocidentais (e apenas estas, convém recordar) vivem hoje em dia em plano de igualdade com a outra metade da humanidade. Mas os princípios do Feminino nunca foram, em toda a História, tão ignorados por uma civilização assente, enquanto tal, em valores que lhes são diametralmente opostos.
Há esperança? Certamente que sim, se esta mesma civilização, hoje em profunda crise, for capaz de ver nas qualidades intrinsecamente femininas do Ser o fio de Ariadne que a poderá conduzir para fora do labirinto em colapso da materialidade e da “lei do mais forte”. O estabelecimento de teias locais de entreajuda, os projectos em micro-escala (hortas comunitárias, pequenos negócios, projectos artesanais, etc.), as trocas directas, cada vez mais “na moda” (trocas de tempo, de bens, de serviços e de capacidades pessoais), o serviço voluntário, a criatividade na busca de novas soluções, a ênfase nas relações interpessoais, todas estas tendências que pertencem claramente ao domínio do feminino, e que até agora foram vistas como secundárias por não prometerem soluções espectaculares nem serem geradoras de riqueza em larga escala, podem vir a revelar-se como solução para ultrapassar as dificuldades do presente.
Que regresse então a Grande Deusa, com os seus passos pequenos e os seus gestos suaves. Que chegue descalça, sem ressoar de trombetas nem brilho ofuscante de holofotes, sem anúncios públicos, sem cortes de ministros e partidários, dispensando orçamentos, estatísticas e estudos de mercado. Que regresse o Feminino, como a água da chuva que tanto tarda, para lentamente inundar a Terra sequiosa. Pela sua própria natureza, nunca o Feminino se recusará a quem o procura.

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