quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Dia da Espiga e a Festa da Ascensão



As tradições que conservam uma relação com os ritmos da natureza, e que harmonizam o nosso dia-a-dia profano com o carácter sagrado destes mesmos ritmos, estão a perder-se no mundo ocidental. Isto tem como duplo efeito a dessacralização da vida quotidiana, que se resume então aos afazeres vulgares e ao tempo de lazer – sem o terceiro elemento dos “dias especiais”, que nos impeliam a uma subida, ainda que provisória, do nível de consciência – e a perda de sensibilidade para um tempo natural, orgânico e real, por oposição ao tempo artificial imposto pelo relógio e pelo calendário. Como exemplo disto, vemos que mesmo entre aqueles que hoje ainda compram ou colhem o ramo do Dia da Espiga, poucos conhecem já o seu significado.

Actualmente celebrado na Quinta-feira da Ascensão, o Dia da Espiga é a versão nacional dos antigos rituais de celebração da Primavera e consagração da natureza e das colheitas. Apesar do contexto cristianizado, alguns costumes difundidos por toda a Europa ainda revestem este antiquíssimo cunho agrícola, como a bênção de cereais e uvas que por vezes decorre durante a missa, ou a bênção dos “primeiros frutos” hoje efectuada nos três dias que antecedem a Ascensão. Estes gestos recordam o carácter mágico desta época, quando em toda a parte se assistia à manifestação da vida vegetal e animal após a letargia do frio do inverno. O Dia da Espiga reproduz também outra tradição nacional, a das Maias, festejada a 1 de Maio com a colocação de giestas ou outras flores amarelas nas portas e janelas das casas, como forma de receber e celebrar a fertilidade da natureza e esconjurar o mal.

O Dia da Espiga não se limitava, no entanto, à colheita do ramo e ao enfeitar das portas. Esta foi já uma das datas mais festivas do ano, considerada mesmo como o dia mais santo do calendário, e observada em muitas regiões do país com uma paragem de todos os trabalhos equivalente ao domingo, acreditando-se que nele a própria natureza suspendia toda a sua actividade. No Cancioneiro Popular Português pode ler-se: se os passarinhos soubessem / Quando é dia d'Ascensão / Nem subiam ao seu ninho / Nem punham o pé no chão

A “natureza suspensa” está também presente na antiga crença da Hora, aquela que decorre entre o meio-dia solar e a uma hora da tarde, quando "as águas dos ribeiros não correm, o leite não coalha, o pão não leveda e as folhas se cruzam". Este era o momento ideal para a colheita do ramo, composto por espigas, malmequeres brancos e amarelos, papoilas, ramos de oliveira, folhas de videira e alecrim. As espigas simbolizam o pão, que se desejava abundante durante todo o ano; a videira representa o vinho, ao mesmo tempo “sangue de Cristo” e fonte de alegria para o camponês; os malmequeres são o ouro e a prata; as papoilas evocam a cor do sangue, e representam o amor, a vida e a fertilidade; o azeite “que tempera e alumia” é também símbolo da paz; e o alecrim, erva usada para defumar as casas e os doentes, dá saúde e afasta as influências maléficas.

Este ramo deve ser colocado todos os anos por detrás da porta de entrada, ou sobre a chaminé da cozinha, de forma a proteger o lar (também simbolizado pelo fogo doméstico) e a trazer-lhe abundância. Por vezes guardava-se junto do ramo uma fatia ou um pequeno pão, para garantir que este não faltaria.
Ascensão de Cristo, Perugino, 1510

Por ser coincidente com a Quinta-feira da Ascensão, o Dia da Espiga é uma data móvel que segue o calendário litúrgico cristão. A festa cristã é também bastante antiga, seguramente anterior ao século V. Desde então observa-se nesta data uma vigília nocturna, que representa a expectativa da glorificação de Cristo. A Quinta-feira da Ascensão possui em comum com o Dia da Espiga o mote da esperança, que na origem pagã dos rituais da natureza se traduzia na esperança da abundância das colheitas após o adormecimento invernal, e em ambiente cristão é a esperança da salvação e da ressurreição dos mortos. Numa e noutra comemoração assistimos à vitória da Vida sobre a Morte.

Sem comentários:

Enviar um comentário