As
tradições que conservam uma relação com os ritmos da natureza, e que harmonizam
o nosso dia-a-dia profano com o carácter sagrado destes mesmos ritmos, estão a
perder-se no mundo ocidental. Isto tem como duplo efeito a dessacralização da
vida quotidiana, que se resume então aos afazeres vulgares e ao tempo de lazer –
sem o terceiro elemento dos “dias especiais”, que nos impeliam a uma subida,
ainda que provisória, do nível de consciência – e a perda de sensibilidade para
um tempo natural, orgânico e real, por oposição ao tempo artificial imposto
pelo relógio e pelo calendário. Como exemplo disto, vemos que mesmo entre
aqueles que hoje ainda compram ou colhem o ramo do Dia da Espiga, poucos conhecem
já o seu significado.
Actualmente
celebrado na Quinta-feira da Ascensão, o Dia da Espiga é a versão nacional dos
antigos rituais de celebração da Primavera e consagração da natureza e das
colheitas. Apesar do contexto cristianizado, alguns costumes difundidos por
toda a Europa ainda revestem este antiquíssimo cunho agrícola, como a bênção de
cereais e uvas que por vezes decorre durante a missa, ou a bênção dos “primeiros
frutos” hoje efectuada nos três dias que antecedem a Ascensão. Estes gestos
recordam o carácter mágico desta época, quando em toda a parte se assistia à manifestação
da vida vegetal e animal após a letargia do frio do inverno. O Dia da Espiga reproduz
também outra tradição nacional, a das Maias, festejada a 1 de Maio com a
colocação de giestas ou outras flores amarelas nas portas e janelas das casas, como
forma de receber e celebrar a fertilidade da natureza e esconjurar o mal.
O
Dia da Espiga não se limitava, no entanto, à colheita do ramo e ao enfeitar das
portas. Esta foi já uma das datas mais festivas do ano, considerada mesmo como o
dia mais santo do calendário, e observada em muitas regiões do país com uma
paragem de todos os trabalhos equivalente ao domingo, acreditando-se que nele a
própria natureza suspendia toda a sua actividade. No Cancioneiro Popular
Português pode ler-se: se os passarinhos
soubessem / Quando é dia d'Ascensão / Nem subiam ao seu ninho / Nem punham o pé
no chão…
A
“natureza suspensa” está também presente na antiga crença da Hora, aquela que decorre entre o meio-dia
solar e a uma hora da tarde, quando "as águas dos ribeiros não correm, o
leite não coalha, o pão não leveda e as folhas se cruzam". Este era o
momento ideal para a colheita do ramo, composto por espigas, malmequeres
brancos e amarelos, papoilas, ramos de oliveira, folhas de videira e alecrim. As
espigas simbolizam o pão, que se desejava abundante durante todo o ano; a
videira representa o vinho, ao mesmo tempo “sangue de Cristo” e fonte de alegria
para o camponês; os malmequeres são o ouro e a prata; as papoilas evocam a cor
do sangue, e representam o amor, a vida e a fertilidade; o azeite “que tempera
e alumia” é também símbolo da paz; e o alecrim, erva usada para defumar as
casas e os doentes, dá saúde e afasta as influências maléficas.
Este
ramo deve ser colocado todos os anos por detrás da porta de entrada, ou sobre a
chaminé da cozinha, de forma a proteger o lar (também simbolizado pelo fogo doméstico)
e a trazer-lhe abundância. Por vezes guardava-se junto do ramo uma fatia ou um
pequeno pão, para garantir que este não faltaria.
Ascensão de Cristo, Perugino, 1510 |
Por ser coincidente com a Quinta-feira da Ascensão,
o Dia da Espiga é uma data móvel que segue o calendário litúrgico cristão. A
festa cristã é também bastante antiga, seguramente anterior ao século V. Desde
então observa-se nesta data uma vigília nocturna, que representa a expectativa da
glorificação de Cristo. A Quinta-feira da Ascensão possui em comum com o Dia da
Espiga o mote da esperança, que na
origem pagã dos rituais da natureza se traduzia na esperança da abundância das
colheitas após o adormecimento invernal, e em ambiente cristão é a esperança da
salvação e da ressurreição dos mortos. Numa e noutra comemoração assistimos à vitória
da Vida sobre a Morte.
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