terça-feira, 29 de maio de 2012

O Sangue da Lua (I)



Desde as épocas mais arcaicas, o mistério feminino da menstruação foi reverenciado e temido em praticamente todas as sociedades. A sua ligação com as fases da Lua, e o facto do ciclo médio feminino (28 dias) corresponder exactamente a uma lunação, não podia passar despercebida, e só serviu para aumentar o carácter sagrado desta relação íntima e exclusiva entre as mulheres e a Natureza. Do assombro causado pelo fenómeno nasceram inúmeros mitos e rituais, e a crença generalizada de que o próprio sangue menstrual daria origem à criança que crescia no útero. Entre os Maoris, em diversas tribos africanas, e até em relatos hindus, os bebés são formados de sangue menstrual coagulado, o que para Aristóteles e Plínio correspondia a uma verdade (pré) científica.

Diversos mitos do Médio Oriente relatam a criação da Humanidade a partir de terra misturada com sangue menstrual, e esta concepção encontra-se mesmo no nome de Adão, o primeiro homem, da palavra hebraica que significa “sangue” (dam). O feminino de Adão, ou adamah, significa por sua vez “terra” (chão), mas também “vermelho”. No Génesis, Adão é formado a partir de adamah, a terra vermelha ou ensanguentada à qual Deus insufla então o sopro da vida. Também no Corão se pode ler que Allah criou o homem a partir de alaqa, um coágulo de sangue. Tais histórias repetem-se por todo o globo, encontrando-se relatos semelhantes na América do Sul ou nos mais arcaicos mitos gregos e romanos.

Naturalmente, o poder vivificante do sangue menstrual fazia dele um "elixir da longevidade" e uma cura poderosa. Indícios destas crenças encontram-se em lendas que referem o sangue da Lua ou o vinho da deusa, ou o sangue da sabedoria da mitologia nórdica, bebido pelos deuses de forma equivalente ao Soma indiano, ao sangue de Ísis (Sa) egípcio, ao Amrita persa ou à Ambrósia da imortalidade do Olimpo grego. O banho revigorante no líquido que guarda a essência da vida também faz parte de inúmeras histórias, e a convicção de que a união sexual com uma mulher menstruada daria ao homem poderes extraordinários, ou até a vida eterna, encontra-se em diversos textos tântricos e taoistas.

Estas são as mais antigas versões de uma história que o tempo adulterou inteiramente. Com o desenvolvimento das sociedades patriarcais, tais crenças foram sendo disfarçadas ou substituídas por outras, nas quais a reverência pelo sangue uterino passa a temor, e finalmente a aversão. A palavra hebraica dam (sangue) viria a significar “mulher” noutras línguas indo-europeias (damsel, madam, dama, dame), e também “maldição” ou “amaldiçoado” (damned, danado, etc.). O latim damnare significa "condenar", e provém de damnum, "prejuízo, perda ou ferida”, o que neste contexto não podia ser mais explícito.

Aos poucos, as classes sacerdotais patriarcais foram revendo os mistérios das mulheres de acordo com os seus preconceitos próprios. Se estes preconceitos estavam em parte baseados na ignorância e no desejo de tomar o poder às sociedades tendencialmente matriarcais, eram também consequência do desenvolvimento do pensamento simbólico, este especificamente masculino, e de certa forma oposto à vivência do corpo que caracteriza o universo feminino. Talvez não seja descabido dizer que a sacralidade dos ciclos das mulheres, harmonizados com os ritmos cósmicos e naturais, e dos quais resulta toda a vida humana, se perdeu de vista quando os homens lhes tentaram sobrepor o pensamento abstracto e simbólico. O Feminino é literal, material e corpóreo, enquanto o Masculino é simbólico, sublimado e mental.

A partir daqui, surgem muitas das interdições à mulher que menstrua: o contacto com o seu sangue, o mesmo que antigamente dava a imortalidade, pode agora causar a morte, a doença, a cegueira, a perda de virilidade. Das leis brâmanes e mitos védicos ao Talmude, dos preceitos zoroastrianos à tradição rabínica, dos relatos de Plínio às superstições cristãs, o perigo que o sangue uterino representa é anunciado em todas as tradições. As mulheres que sangram são afastadas da comida, dos homens, da comunidade, dos templos. Nada, afirma São Jerónimo, é tão impuro como uma mulher menstruada.

O pensamento científico apenas desmistificou parte destas crenças. Até ao século XX, médicos e cientistas ainda se referiram à menstruação como uma patologia e à mulher menstruada como um ser débil. Todas aquelas que lêem este texto devem ainda recordar a interdição de fazer desporto, tomar banho, lavar o cabelo ou bater ovos, entre outras…

E onde todos estes mitos caíram por terra, surgiu outra ameaça aos mistérios femininos, talvez a mais insidiosa de todas: a sugestão de que estes não existem. Na sociedade actual, “moderna” mas ainda indubitavelmente patriarcal, cujo altar é o da Razão e da Ciência, o sangramento mensal não passa de um pequeno incómodo ultrapassável – e que um dia será definitivamente posto de parte pelos avanços da farmacêutica. A mulher moderna tem ao seu dispor tratamentos hormonais, analgésicos e barreiras discretas e eficazes que lhe permitem domesticar o ciclo menstrual, anular os seus incómodos, esquecer-se da sua existência. Pode viver uma vida igual à do homem.  

E no entanto, o mistério do derrame de sangue como sinal de amadurecimento chegou a impressionar tanto os seres humanos que condicionou até mesmo os ritos de passagem masculinos. Em diversas sociedades tradicionais, também aos rapazinhos no limiar da idade adulta era provocado sangramento, reproduzindo-se neles a misteriosa “ferida” arquetípica que abria as meninas à comunhão com os ritmos cósmicos. Hoje em dia só elas continuam a enfrentar este rito de passagem, já que apenas na mulher ele acontece naturalmente. É isto uma maldição, ou uma oportunidade extraordinária para todas nós?

Ainda que se tenha perdido o contexto sagrado da menstruação, a sua vivência física mantém-se. Menstruação, gravidez e parto, menopausa: o corpo da mulher é um verdadeiro “fio de Ariadne” para quem quiser aventurar-se pelo labirinto do Feminino e dos seus mistérios. Ao contrário da mente, o corpo não mente. E o corpo do mundo é feminino.

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