Então
não existia o não-existente nem o existente: não existia o espaço do ar, nem o céu
acima dele.
(…)
A
escuridão existia: o Todo inicial revelado na escuridão era caos
indiscriminado. Tudo aquilo que então existia era vazio e informe: pelo grande
poder do Calor foi criado este Um.
Hino da Criação, Rig Veda (texto sagrado hindu)
A
forma como a nossa sociedade tem visto os órgãos sexuais e reprodutivos da
mulher reflecte a ignorância generalizada no Ocidente moderno sobre a noção de
vazio. O vazio original é glorificado, em muitas tradições, como uma
representação da Grande Mãe cósmica, o útero escuro de onde brota toda a
manifestação, um espaço pleno de energia. Um dos mais famosos Sutras budistas,
o MahaPrajnaparamita Hridaya (Sutra do Coração), afirma que a Vacuidade é o
fundamento da existência de todas as coisas: a Forma é o Vazio, o Vazio é a Forma. Na tradição hindu, um dos
significados de Sunyata, o Vazio, é a
força vital latente criando interminavelmente a Realidade. E mesmo na Bíblia o
vazio é o princípio de toda a criação - no
princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia…
Finalmente,
no ano passado (2011) um grupo de físicos observou directamente, e pela
primeira vez, partículas de luz nascendo e extinguindo-se no vácuo cósmico,
dando realidade à possibilidade de “algo” provir do nada, já prevista pela
mecânica quântica. O vazio está pleno de potencialidades.
No
entanto, a noção de que o vazio equivale à falta de algo predomina na nossa
sociedade essencialmente quantitativa e materialista, que teme, como Pascal, o “silêncio
dos espaços infinitos” e vê na ausência aparente um sinónimo da própria morte.
E
o útero feminino, esse vazio por excelência, bem como o espaço da vagina, são, para
um psicólogo como Freud, símbolos de ausência. É em torno desta concepção que Freud
desenvolve a sua teoria da inveja do pénis, levando mais tarde Lacan (que
desmonta parte da hipótese freudiana) à provocante afirmação la Femme n'existe pas. Neste sentido, a Mulher não
existe porque as mulheres são desprovidas de significante, ou símbolo que as
represente globalmente, sendo que o único significante universalmente reconhecido
para o género humano seria o falo masculino.
A
sexualidade feminina ganha assim a sua aura negativa. Por um lado, a Mulher é a
matriz da vida, sendo objecto físico de desejo na medida em as suas formas arredondadas
reproduzem e evocam a forma da fonte de toda a vida (poder-se-ia dizer que o
corpo feminino é uma revelação do seu mistério interior, a rotundidade uterina).
Porém, ela é também temida, e é-o justamente na sua dimensão vazia, aquilo a
que Lacan chama de privação: não
faltando nada à mulher, já que possui a sua estrutura sexual própria (ao contrário
do enunciado de Freud), ela está no entanto privada
de algo – o falo, naturalmente. E privação, ausência, equivalem no dicionário da
misoginia à própria morte. Desta maneira o berço torna-se sepultura, e a fonte
da vida é temida como o negro abismo onde se perdem as almas.
E
portanto a Mulher de Lacan não existe, embora todas as mulheres existam… o que,
de certa forma, poderia justificar o eterno drama masculino expresso na
interrogação “o que querem afinal as mulheres?”. Mas a esta pergunta nem as
próprias poderiam responder, porque sem significante nada pode ser dito da
mulher (rien ne peut se dire de la femme,
dizia ainda o psicanalista francês) – a Mulher é silêncio, e o Homem (ou o seu
falo) é a palavra. O falo é a fala.
O
que não é inteiramente desprovido de sentido. Na verdade, a Mulher e o seu útero
são o silêncio no qual ecoa a Palavra cósmica ou divina, o logos ou Verbo. Na tradição
cristã esta simbólica essencial está perfeitamente explícita: recebendo e aceitando
o Verbo divino - faça-se em mim segundo a
tua palavra - Maria gerou a incarnação desta mesma Palavra. Em Cristo, e segundo
a expressão de São João, o Verbo fez-se
homem e veio habitar connosco. Este é, de resto, o Verbo primordial (No princípio existia o Verbo; o Verbo estava
em Deus; e o Verbo era Deus. (…) Por Ele é que tudo começou a existir; e sem
Ele nada veio à existência) que criou o mundo a partir do Vazio original (Deus disse: «Faça-se a luz», e a luz foi feita).
Então,
sem vazio, onde ecoaria o Verbo? Sem silêncio, onde soaria a Palavra? A resposta
é evidente: sem vazio não existe som, não existe linguagem, não existe Verbo
criador. Se o Masculino fornece o impulso inicial e a orientação à manifestação,
o Feminino fornece-lhe a forma e a substância. Ao contrário do que pressupõe a
análise freudiana, o vazio dos órgãos femininos não é meramente o “negativo” do
órgão masculino. Sendo agora a nossa vez de provocar, porque não dizer mesmo que
o “nada” feminino é o molde do “algo”
masculino?
O
escultor recorre a um molde oco, onde é vazado o metal de que é feita a
escultura. O oco, o vazio, é a matriz da criação; e assim será igualmente com o
vazio uterino. O útero é como o poço cantado nos versos de um dos mais antigos
escritos chineses, o Tao Te Ching, que compara a sua forma vazia ao próprio Tao
(o Absoluto):
O Tao é como um poço:
Usado mas nunca esgotado.
É como o vazio eterno:
Cheio de infinitas
possibilidades.
Está escondido mas sempre
presente.
Não sei quem o deu à luz.
Não sei quem o deu à luz.
É mais antigo que Deus.
Ver
também O Poder do Útero (I)
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