quinta-feira, 24 de maio de 2012

O Poder do Útero (II)



Então não existia o não-existente nem o existente: não existia o espaço do ar, nem o céu acima dele.
(…)
A escuridão existia: o Todo inicial revelado na escuridão era caos indiscriminado. Tudo aquilo que então existia era vazio e informe: pelo grande poder do Calor foi criado este Um.
Hino da Criação, Rig Veda (texto sagrado hindu)

A forma como a nossa sociedade tem visto os órgãos sexuais e reprodutivos da mulher reflecte a ignorância generalizada no Ocidente moderno sobre a noção de vazio. O vazio original é glorificado, em muitas tradições, como uma representação da Grande Mãe cósmica, o útero escuro de onde brota toda a manifestação, um espaço pleno de energia. Um dos mais famosos Sutras budistas, o MahaPrajnaparamita Hridaya (Sutra do Coração), afirma que a Vacuidade é o fundamento da existência de todas as coisas: a Forma é o Vazio, o Vazio é a Forma. Na tradição hindu, um dos significados de Sunyata, o Vazio, é a força vital latente criando interminavelmente a Realidade. E mesmo na Bíblia o vazio é o princípio de toda a criação - no princípio, quando Deus criou os céus e a terra, a terra era informe e vazia

Finalmente, no ano passado (2011) um grupo de físicos observou directamente, e pela primeira vez, partículas de luz nascendo e extinguindo-se no vácuo cósmico, dando realidade à possibilidade de “algo” provir do nada, já prevista pela mecânica quântica. O vazio está pleno de potencialidades.

No entanto, a noção de que o vazio equivale à falta de algo predomina na nossa sociedade essencialmente quantitativa e materialista, que teme, como Pascal, o “silêncio dos espaços infinitos” e vê na ausência aparente um sinónimo da própria morte.
 
E o útero feminino, esse vazio por excelência, bem como o espaço da vagina, são, para um psicólogo como Freud, símbolos de ausência. É em torno desta concepção que Freud desenvolve a sua teoria da inveja do pénis, levando mais tarde Lacan (que desmonta parte da hipótese freudiana) à provocante afirmação la Femme n'existe pas. Neste sentido, a Mulher não existe porque as mulheres são desprovidas de significante, ou símbolo que as represente globalmente, sendo que o único significante universalmente reconhecido para o género humano seria o falo masculino.

A sexualidade feminina ganha assim a sua aura negativa. Por um lado, a Mulher é a matriz da vida, sendo objecto físico de desejo na medida em as suas formas arredondadas reproduzem e evocam a forma da fonte de toda a vida (poder-se-ia dizer que o corpo feminino é uma revelação do seu mistério interior, a rotundidade uterina). Porém, ela é também temida, e é-o justamente na sua dimensão vazia, aquilo a que Lacan chama de privação: não faltando nada à mulher, já que possui a sua estrutura sexual própria (ao contrário do enunciado de Freud), ela está no entanto privada de algo – o falo, naturalmente. E privação, ausência, equivalem no dicionário da misoginia à própria morte. Desta maneira o berço torna-se sepultura, e a fonte da vida é temida como o negro abismo onde se perdem as almas. 

E portanto a Mulher de Lacan não existe, embora todas as mulheres existam… o que, de certa forma, poderia justificar o eterno drama masculino expresso na interrogação “o que querem afinal as mulheres?”. Mas a esta pergunta nem as próprias poderiam responder, porque sem significante nada pode ser dito da mulher (rien ne peut se dire de la femme, dizia ainda o psicanalista francês) – a Mulher é silêncio, e o Homem (ou o seu falo) é a palavra. O falo é a fala.

O que não é inteiramente desprovido de sentido. Na verdade, a Mulher e o seu útero são o silêncio no qual ecoa a Palavra cósmica ou divina, o logos ou Verbo. Na tradição cristã esta simbólica essencial está perfeitamente explícita: recebendo e aceitando o Verbo divino - faça-se em mim segundo a tua palavra - Maria gerou a incarnação desta mesma Palavra. Em Cristo, e segundo a expressão de São João, o Verbo fez-se homem e veio habitar connosco. Este é, de resto, o Verbo primordial (No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus. (…) Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência) que criou o mundo a partir do Vazio original (Deus disse: «Faça-se a luz», e a luz foi feita).

Então, sem vazio, onde ecoaria o Verbo? Sem silêncio, onde soaria a Palavra? A resposta é evidente: sem vazio não existe som, não existe linguagem, não existe Verbo criador. Se o Masculino fornece o impulso inicial e a orientação à manifestação, o Feminino fornece-lhe a forma e a substância. Ao contrário do que pressupõe a análise freudiana, o vazio dos órgãos femininos não é meramente o “negativo” do órgão masculino. Sendo agora a nossa vez de provocar, porque não dizer mesmo que o “nada” feminino é o molde do “algo” masculino?

O escultor recorre a um molde oco, onde é vazado o metal de que é feita a escultura. O oco, o vazio, é a matriz da criação; e assim será igualmente com o vazio uterino. O útero é como o poço cantado nos versos de um dos mais antigos escritos chineses, o Tao Te Ching, que compara a sua forma vazia ao próprio Tao (o Absoluto):

O Tao é como um poço:
Usado mas nunca esgotado.
É como o vazio eterno:
Cheio de infinitas possibilidades.

Está escondido mas sempre presente.
Não sei quem o deu à luz.
É mais antigo que Deus.

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